28/07/2007

A MISSA DAS SOMBRAS

ANATOLE FRANCE

Eis o que o sacristão da igreja de Santa Eulalia, em Neuville-d'Aumont, me contou debaixo da latada do Cavalo Branco, numa bela noite de verão, bebendo uma garrafa de velho vinho à saude de um morto muito abastado, que ele havia enterrado honrosamente naquela manhã mesma, sob um tecido cheio de belas lagrimas de prata.
— Meu finado e pobre pai (quem fala é o sacristão) foi, em vida, coveiro. Era de humor agradavel, e isso sem duvida decorria de sua profissão, porque se tem reparado que as pessoas que trabalham nos cemiterios possuem espirito jovial. A morte não os atemoriza absolutamente; jamais se preocupam com ela. Eu, que lhe estou falando, senhor, penetro num cemiterio, à noite, tão serenamente quanto no caramanchão do Cavalo Branco. E se, por acaso, encontro um espectro, não me inquieto absolutamente com isso, porque reflito que ele pode perfeitamente ir cuidar de seus negocios, da mesma forma que eu dos meus. Conheço os habitos dos mortos e seu carater. Sei a tal respeito coisas que os proprios sacerdotes ignoram. E o senhor ficaria surpreso se lhe contasse tudo o que tenho visto. Mas, nem todas as verdades são proprias para serem contadas, e meu pai, que todavia gostava de narrar historias, não revelou a vigesima parte do que sabia. Em compensação, repetia muitas vezes as mesmas narrativas e, ao que eu saiba, relatou bem umas cem vezes a aventura de Catarina Fontaine.
Catarina Fontaine era uma velha senhorita que ele se lembrava de ter visto em criança. Não me surpreenderia se ainda houvesse na região até uns três anciões que ainda se recordem de ter ouvido falar a seu respeito, por que ela era muito conhecida e considerada, embora pobre. Morava na esquina da rua das Freiras, na torrezinha que o senhor ainda pode ver e que depende de um velho palacete meio arruinado, que dá para o jardim das Ursulinas. Há nessa torrezinha figuras e inscrições meio apagadas. O falecido paroco de Santa Eulalia, Levasseur, dizia aí estar escrito em latim que o amor é mais forte que a morte. O que se refere, acrescentava, ao amor divino.
Catarina Fontaine vivia sozinha nessa pequena habitação. Fazia rendas. O senhor sabe que as rendas de nossa região eram antigamente muito afamadas. Não se conheciam parentes ou amigos seus. Dizia-se que amara, aos dezoito anos, o jovem cavaleiro D'Aumont-Cléry, com quem noivara secretamente. Mas as pessoas de bem não queriam acreditar absolutamente nisso e diziam tratar-se de uma historia que fora imaginada porque Catarina Fontaine lembrava mais uma senhora, que uma operaria, conservava sob seus cabelos brancos os vestigios de uma grande beleza, possuia um ar triste e que se lhe podia ver na mão um desses anéis em que o ourives colocou duas mãozinhas unidas e que era costume outrora os noivos trocarem. O senhor saberá, daqui a pouco, o que isso significava.
Catarina Fontaine vivia santamente. Frequentava as igrejas e, todas as manhãs, qualquer que fosse o tempo, ia ouvir a missa de seis horas em Santa Eulalia.
Ora, uma noite de dezembro, quando ela estava deitada em seu pequeno quarto, foi despertada pelo toque dos sinos; certa de estarem eles anunciando a primeira missa, a piedosa senhora vestiu-se e desceu à rua, onde a noite era tão fechada que não se viam absolutamente as casas e que claridade alguma era perceptivel no céu negro. E reinava tamanho silencio nessas trevas - nem mesmo um cão ladrava ao longe - que a pessoa sentia-se completamente separada do mundo dos vivos. Mas Catarina Fontaine, que conhecia cada uma das pedras onde pisava e que podia ir à igreja de olhos fechados, alcançou sem dificuldade a esquina da rua das Freiras com a rua da Paroquia, no ponto onde se ergue a casa de madeira que exibe uma arvore de Jessé, esculpida numa volumosa trave. Tendo alcançado esse local, ela viu que as portas da igreja estavam abertas e que deixavam sair uma grande claridade de cirios. Continuou a caminhar e, tendo entrado, encontrou-se numa grande reunião que enchia a igreja. Ela, porem, não reconhecia nenhum dos presentes e estava surpresa por ver aquelas pessoas trajadas de veludo e de brocado, com plumas no chapéu e trazendo espada, à maneira dos tempos de outrora. Havia senhores que seguravam longas bengalas de castão de ouro e damas com toucados de rendas presos com um pente em diadema. Cavaleiros de S. Luís davam a mão a essas senhoras que escondiam atrás do leque um rosto pintado, do qual só era visivel a tempora empoada e um sinal no canto dos olhos! E todos iam colocar-se em seu lugar sem o menor ruido, e não se ouviam, enquanto andavam, nem o som dos passos no lajedo, nem o roçagar dos tecidos. As naves laterais enchiam-se de multidão de jovens artesãos, de casaco pardo, calções de fustão e meias azuis, que seguravam pela cintura raparigas lindissimas, rosadas, que conservavam os olhos baixos. E, junto às pias de agua benta, camponesas de saia vermelha e corpinho de atar, sentavam-se no chão com a tranquilidade dos animais domesticos, enquanto uns mocetões, de pé atrás delas, arregalavam os olhos rodando o chapéu nos dedos. E todas aquelas fisionomias silenciosas pareciam imobilizadas para sempre, no mesmo pensamento, suave e triste. Ajoelhada em seu lugar costumeiro, Catarina Fontaine viu o sacerdote caminhar, para o altar, precedido por dois acolitos. Não reconheceu nem o sacerdote, nem os ajudantes. Começou a missa. Era uma silenciosa missa na qual não se ouvia absolutamente o som dos labios que se agitavam, nem o rumor da sineta agitada inutilmente. Catarina Fontaine sentia-se sob o olhar e sob a influencia de seu misterioso vizinho e, tendo olhado sem quase volver a cabeça, reconheceu o jovem cavaleiro d'Aumont-Cléry, que a havia amado e que morrera fazia quarenta e cinco anos. Reconheceu-o por um sinalzinho que ele possuia sob a orelha esquerda e, principalmente, pelo sombreado dos longos cilios negros em seu rosto. Vestia o traje de caça, vermelho, com alamares dourados, que ele usava no dia em que, tendo-a encontrado no bosque de São Leonardo, pedira-lhe de beber e roubara-lhe um beijo. Conservava a sua mocidade e seu bom aspecto. Seu sorriso ainda mostrava uma dentadura de jovem lobo. Catarina disse-lhe baixinho:
— Senhor, vós que fostes meu amigo e a quem dei outrora o que uma jovem possui de mais precioso, Deus vos tenha em sua graça! Possa ele me inspirar, finalmente, o pesar pelo pecado que cometi convosco; porque é verdade que, de cabelos brancos e proxima da morte, ainda não me arrependo de vos ter amado. Mas, finado amigo, meu belo senhor, dizei-me quem são essas pessoas trajadas à maneira antiga, que estão assistindo aqui a esta silenciosa missa.
O cavaleiro d'Aumont-Cléry respondeu com uma voz mais debil que um sopro e, não obstante, mais clara que o cristal:
— Catarina, esses homens e essas mulheres são almas do purgatorio que ofenderam a Deus, pecando, a nosso exemplo, pelo amor das criaturas, mas que nem por isso estão desligadas de Deus, porque seu pecado foi, como o nosso, sem maldade. Enquanto separadas daqueles que amavam sobre a terra, elas se purificam no fogo lustral do purgatorio, padecem as dores da ausencia, para eles esse sofrimento é o mais cruel. São tão infelizes que um anjo do céu se apiada de meu martirio de amor. Com o consentimento de Deus, reune, todos os anos, durante uma hora da noite, o amigo à amiga em sua igreja paroquial, onde lhes é permitido assistir à missa das sombras, segurando-se pela mão. Esta é a verdade. Se me foi permitido ver-te aqui, antes de tua morte. Catarina, tal coisa não se realizou sem a permissão de Deus.
E Catarina Fontaine lhe respondeu:
— Bem desejaria morrer para voltar a ser formosa como nos dias, meu finado senhor, em que te dava de beber na floresta.
Enquanto falavam assim, baixinho, um conego muito idoso recolhia as esmolas e apresentava uma grande salva de cobre aos presentes que aí deixavam cair sucessivamente moedas antigas, há muito tempo fora de circulação: escudos de seis libras, florins, ducados e ducadões, jacobos, nobres com a rosa; e as moedas caiam em silencio. Quando a salva de cobre lhe foi apresentada, o cavalheiro depositou um luís que não fez mais ruido que as outras moedas de ouro ou de prata.
Depois o velho conego parou em frente a Catarina Fontaine que procurou em seu bolso, sem nele encontrar, um real. Então, não desejando recusar sua dadiva, tirou do dedo o anel que o cavaleiro lhe dera na vespera de sua morte, e atirou-o na concha de cobre. O anel de ouro, ao cair, ressoou como um pesado badalo de sino e, ao ruido atroador que ele fez, o cavaleiro, o conego, o oficiante, os acolitos, as damas, os cavaleiros, toda a assistencia desapareceu; os cirios se apagaram e Catarina Fontaine ficou sozinha nas trevas.
Tendo concluido assim sua narrativa o sacristão bebeu um grande copo de vinho, ficou um instante a meditar e depois prosseguiu nestes termos:
— Contei-lhe esta historia exatamente como a ouvi muitas vezes de meu pai e creio que é verdadeira porque corresponde a tudo o que tenho observado das maneiras e dos costumes peculiares aos defuntos.
Convivi muito com os mortos desde minha infancia e sei que eles costumam voltar a seus amores.
É por isso que os mortos avarentos vagam, à noite, nas proximidades dos tesouros que eles esconderam durante sua vida. Montam boa guarda à volta de seu ouro; mas os cuidados que eles tomam, longe de lhes servirem, prejudicam-nos e não é raro descobrir-se dinheiro enterrado na terra, pesquisando-se o sitio frequentado por um fantasma. Da mesma forma, os finados maridos vem atormentar à noite suas mulheres casadas, em segundas nupcias, e eu poderia indicar muitos que vigiaram melhor suas esposas depois de mortos do que o haviam feito em vida.
Esses são dignos de censura, porque, em boa justiça, os defuntos não deveriam ser ciumentos. Mas lhe estou contando o que tenho observado. Por isso é que se deve ter cuidado quando se desposa uma viuva. Aliás, a historia que lhe relatei tem sua comprovação no seguinte fato:
Na manhã seguinte a essa noite extraordinaria, Catarina Fontaine foi encontrada morta em seu quarto. E o suiço de Santa Eulalia encontrou na salva de cobre que servia para o peditorio, um anel de ouro com duas mãos juntas. Aliás, não sou homem que conte historias para fazer rir. E se pedissemos outra garrafa de vinho?

Anatole François Thibault, literariamente conhecido por Anatole France, nasceu em 1844 e faleceu em 1924. Um dos mais notaveis escritores franceses dos tempos modernos, é autor de grande numero de livros que são hoje considerados autenticas obras-primas, tanto pela sua fina ironia e riqueza de temas, como pela incomparavel elegancia do estilo. Iniciou-se nas letras em 1873, com o volume de versos "Poemas Dourados", a que se seguiu o volume, tambem de poesias, "Nupcias Corintias". Depois, nunca mais escreveu senão em prosa, contando-se por dezenas os volumes com que enriqueceu a literatura de seu país e do mundo. Destacam-se, de suas obras, as seguintes: "O Crime de Silvestre Bonnard", "Thais", "O Lirio Vermelho", "A Ilha dos Pinguins", "O Anel de Ametista", "O Manequim de Vime", "O sr. Bergeret em Paris", "As Sete Mulheres de Barba Azul", "Historia Contemporanea" e outras.

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