29/07/2004

Utopia de ZECA AFONSO

Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria

Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
E teu a ti o deves
lança o teu
desafio

Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio este rumo esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?

O presente é o grande trauma nacional por: Arnaldo Jabor

Esta cronica faz-me lembrar um país que eu conheço.

Sempre que venho a Nova York, o Brasil vira um sintoma em mim. Explico-me. Por mais que queira, não consigo esquecer os olhos de brasileiro com que vejo a cidade. Sou irremediavelmente verde-amarelo. O Brasil era (e é) para mim uma visão de mundo, vício que as gerações mais novas talvez não pratiquem.
Eu e meus amigos do cinema novo, da esquerda cultural, nós vivíamos o Brasil como uma viagem para o futuro, nunca como um "presente", um "hoje", mas sempre como um projeto, um processo que acreditávamos controlar.
Sempre que chego a Nova York, fico espantado por ver como ainda me habita um "sebastianismo" renitente, duro como um dente difícil de extrair. Eu achava (e se bobear ainda acho) que o Brasil era destinado a ser uma síntese entre o racionalismo "careta" do Ocidente e um Oriente negro musical nosso, com uma "malemolência revolucionária" mulata, sei lá... Mas, quando caio na 5ª Avenida, vejo como fica rasa essa sensação. Aqui vejo que americanos não acreditam em conclusões. Tese e antítese, tudo bem; sínteses, jamais.
Nos últimos anos, tivemos de rever muitas ilusões. Desde a queda do socialismo, caiu o mundo de minha geração e ficou claro que nossa idéia de "revolução" era uma estética, uma poética, nunca uma logística fincada no chão real. Muitos morreram dessa descoberta quando a vida dura do fim dos anos 70 começou a destruir os sonhos do absoluto, ou melhor, o "glamour" do absoluto.
A "revolução" era, para nós, uma cegueira para o presente político doloroso, era uma maneira de racionalizar o beco sem saída nacional.
Se nosso presente era pífio, se nossas famílias eram medíocres, nossos bolsos, furados, nossos políticos, estúpidos, nossos ditadores, brutais, nós éramos a gangue do futuro.
No plano neurótico pessoal, era uma forma de narcisismo utópico, uma maneira de esquecer a morte, um jeitinho de ser ateu, mas com paraíso e vida eterna. Deu no que deu. Estamos hoje com uma terrível ausência de ideologias possíveis para o país, embora seu diagnóstico nunca tenha sido tão visível.
Se os anos 80 já eram o início da desconfiança, os anos 90 foram a brutal chegada do "presente", o violento "desencantamento" do mundo. Como um tocquevillezinho do ano 2000, eu vejo aqui em Nova York a espantosa ligação deste povo com a realidade prática, uma radical recusa de qualquer "bullshit" (bosta de boi) que os iluda.
Daqui fica claro que a grande luta que se trava no Brasil é entre o incontrolável, o inevitável tempo presente e um futuro imaginado.
A direita usa a idéia de futuro como consolo para nosso atraso, na base do "só os pobres verão Deus". Por outro lado, os progressistas também se embaraçam numa "má consciência" paralisadora e não conseguem pensar fora de critérios negativistas antigos, poluídos por teleologias, lendas heróicas de classe, visões sacralizadas do povo, e falam do capitalismo como se ele fosse uma pessoa má e não o hegemônico modo de produção. Assim, patrulham qualquer tentativa de "ver de novo" o país, "anatematizando" muitas idéias como "impensáveis".
E isso fica sob uma luz insuportável na Times Square. Aqui só existe o presente _um cruel, claro, "enorme presente" que se sente sob os pés, uma falta de transcendência que, no entanto, resulta legitimada pela imensa riqueza da cidade. Enquanto sonhamos com um Brasil que nunca chega, aqui a utopia é hoje. Já foi conseguida e está sendo exportada para o mundo todo, violenta ou delicadamente.
Somos românticos e pobres, e eles são pragmáticos e milionários. Eles, "caretas" e obsessivos, realizam seus sonhos mais loucos (como provam suas pirâmides góticas, a tecnologia de ponta, a conquista do universo). Nós, malandros e imaginosos, não conseguimos nem reformar a Constituição de 88. Eles são uma equipe de 200 milhões de pessoas iguais, executando um projeto protestante sem fim.
Nós, 180 milhões de solitários _que nos julgamos diferentes, somos impotentes pela miséria ou ridículos pela ignorância. Eles buscam a felicidade numa "pursuit of happiness" que é feita de uma permanente insatisfação com suas conquistas, sempre à procura de mais lucro, mais eficiência, o que fez o mesmo Tocqueville, em 1831, perceber que eles, americanos, eram passados por uma leve "melancolia em meio à abundância".
Nós nos cremos felizes em nossa precariedade. O atraso cria a ilusão de que "algo virá" quando nada jamais virá do atraso iludido. No Brasil, há um clima romântico para anestesiar a população, sendo que os homens que mamam, roubam e pilham são os únicos práticos e crus, avalizados por aqueles que choram o Ayrton Senna, amam o Carnaval e acreditam ter uma alegria congênita.
Assim, temos muito a desaprender. Temos de desmobilizar nosso excesso de negativismo; qualquer positividade é vista com descrença (vide o Plano Real). É chique ser contra. A esperança é considerada uma ingenuidade. No Brasil, criticar o poder nos exclui e absolve. Nos EUA, a desconfiança do poder do governo pressupõe ações alternativas na sociedade, que sempre se autocrítica e muda.
Em todo meu pobre trabalho na TV e nos jornais, tento mostrar que somos tão ruins como o país, que o atraso não nos exclui como "vítimas" das elites, mas nos inclui no erro geral. Se alguma invasão é benigna, vejo com bons olhos a influência anglo-saxônica na administração da sociedade, um "ethos" protestante amenizando a mediocridade de nossos vícios portugueses. Será, ao menos, um "benefício" da globalização.
O grande trauma dos 90 foi a chegada do presente em nossa vida. Constatamos com dor que estamos "aquém" desse presente do mundo, que nosso problema não é falta de futuro, mas que ser subdesenvolvido é estar antes do "agora".
Por isso, sou tomado de inveja quando chego a Nova York. Vivem o país como seu território abençoado, seu reduto legítimo, construído pelo trabalho obsessivo. Eles têm orgulho dos EUA. Nós temos vergonha do Brasil.

27/07/2004

The Best of Hubble

é obrigatório ir visitar este site.

25/07/2004

Nuvens do profeta gentileza

Eu vinha dirigindo pela enseada de Botafogo, o dia tinha nascido sobre o desfile da Beija-Flor e a manhã soprou uma brisa fresca, antes de o Sol inundar tudo. Mas lá vinha eu, cansado, de janela aberta, sorvendo o ar da minha cidade, feliz da vida, quando apertei a tecla errada no aparelho de som e, ao invés de entrar o samba da Grande Rio, Ella Fitzgerald surgiu cantando Cole Porter, com aquela doçura e categoria de sempre. Imediatamente, o mundo mudou lá fora, minha cabeça deu uma guinada violenta e o olhar foi redirecionado. Ela mal começou a cantar e o olhar foi redirecionado. Música faz isso com a gente, às vezes.
Música nos atira para o ar de repente, sem aviso. É isso. Rouba o chão e estende um tapete de nuvens no lugar. Ella Fitzgerald fez isso, esta manhã, quando eu dirigia pela enseada de Botafogo, achando linda a minha cidade, imaginando o que será dela num futuro que eu não verei. Um futuro distante, quando arqueólogos importantes recuperarão parte dos grandes blocos de concreto com as inscrições do profeta Gentileza, aquelas mesmas que me acostumei a ler e reler nas idas e vindas da Ilha. A beleza gráfica das letras e a composição de suas profecias, de suas palavras de amor. E simplesmente apagaram tudo. Não tiveram sequer o bom senso de perguntar a nós, moradores da cidade, para quem as palavras eram dirigidas. Junto com as palavras de Gentileza, afogados na tinta do poder, vão-se pedaços das minhas viagens e dos meus sonhos, sacolejando nos ônibus, o olhar perdido na feia paisagem da Avenida Brasil, os olhos adolescentes projetando seus sonhos no comprido muro do cemitério do Caju. Tudo apagado. Por um tempo, talvez. Quem sabe, por esses misteriosos descaminhos, aquelas não sejam tábuas de uma grande religião do futuro, preservadas sob a tinta que um dia quis destruí-las. Sei lá, pode ser que aconteça. E pode ser também que tudo desapareça num tapete de nuvens. Mas prefiro acreditar nos mistérios que a vida volta e meia oferece.
Enfim, lembrei da obra de Gentileza e do belo enredo de Joãosinho Trinta e fui colocar o samba da escola para sacudir a manhã, quando deu-se a melódia. Ella começou a cantar e meu corpo cansado parou, enquanto a alma, cheia das alegrias da noite de batuque, virou de cabeça para baixo e, de repente, eu voando nos ares da harmonia, imaginei que nossas existências são desfiles, com grandes carros alegóricos, um para cada evento importante do nosso enredo. E o dia foi passando com mais vagar pela janela, até a brisa segurou a respiração para que alguns dos carros mais delicados passassem pela avenida à beira mar. Congelou-se a imagem daquele momento, a fotografia para sempre guardada nos anais do tempo.
E, na cabeça, eu ia repassando algumas das mensagens que recebi por causa da tal revisita a um dia escolhido, que eu propus na última crônica. Como de hábito, meus leitores se inspiraram e eu tenho recebido poesia de toda parte, pedaços de lembrança, retalhos de vidas, que de alguma forma tento costurar para dar sentido à minha. O nosso patchwork particular. As lembranças de vocês iam se desenrolando na minha cabeça, um grande desfile, carros passando em câmera lenta, Ella cantando ao fundo e o Rio de Janeiro abrindo as cortinas do dia e deixando o sol entrar. Foi assim, esta manhã.
Dormi quase o dia inteiro, um sono picado, besta, de quem parece que tem medo de sonhar. Acordando toda hora, achando que ainda não tinha descansado o bastante, e volta e meia lembrando de um relato, de uma lembrança de alguém, que de longe me ajuda, agora, a escrever esta crônica. Não consegui dormir direito, no final das contas, enquanto o dia corria célere lá fora, ao encontro das luzes do segundo dia. Fiquei zanzando pela casa vazia e acabei sentado no computador, recebendo novas mensagens, mais corações rebentando em flor e gente que fala bonito e pensa bonito e eu vou lendo como quem se ilustra. Acabei marcando todas as mensagens que vocês me enviaram e quero ver se consigo realmente fazer uma crônica que seja uma colcha dos retalhos de todos os nossos corações urbanos (ou, pelo menos, os desses encontros às quintas-feiras). Não sei ainda de que jeito, mas uma hora, assim como quem não quer nada, eu me inspiro.
E, já que todos confessaram tão despudoramente suas preferências, sinto-me na obrigação de compartilhar igualmente meus segredos, de modo que, muito aqui entre nós, se me dado fosse este direito, o dia que revisitaria seria aquele mais comum, um dia de semana qualquer. Nada especial. Apenas um brilho verde nos olhos, um meio sorriso no canto da boca e uma promessa de amor no ar. Esse dia seria o revisitado.

Se me dado fosse esse direito.

Por:-Miguel Falabella

21/07/2004

Vai Alta no Céu

Vai alta no céu a lua da Primavera
Penso em ti e dentro de mim estou completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.
Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.

poema de Fernando Pessoa

19/07/2004

Meditações diante do bumbum de Juliana

Arnaldo Jabor  Publicado em 18 de maio de 2004  Versão impressa
Nos últimos dias, só houve dois assuntos nesse  bendito país: a gafe do Lula como jornalista e o bumbum de Juliana Paes na  "Playboy". Prefiro o bumbum de Juliana. Ia escrever sobre a babaquice do Lula, mas creio que  o outro assunto é mais palpável" do que esse governo especializado em  alternar lentíssimas  indecisões com arroubos ridículos, assembleísmos leninistas com gestos  bruscos que, em geral, têm de ser consertados  depois. Mas não adianta  repetir o óbvio para surdos. Vamos ao que interessa:  o bumbum era esperado  como um messias redentor, aguardado como a salvação do país neste momento  sem graça.  Políticos, bancários, eu, todos ansiávamos por esse  bumbum como por um  Maomé", um profeta. O que poderianos revelar esse  bumbum?  Corri para as bancas e comprei a "Playboy" sob o olhar debochado do jornaleiro que me reconheceu e perguntou se eu não ia levar o "The Economist  também. "Claro, claro...", respondi, vermelho.  Chego em casa, rasgo a capa de plástico com as mãos trêmulas, abro com uma sensação de pecado e esperança, e vejo Juliana Paes em seu esplendor.  Folheio a revista e caio numa perplexidade muda.  Antes de continuar, devo dizer que já escrevi sobre o bumbum da Feiticeira,  o bumbum da Tiraniza e continuo sem uma palavra apropriada. Não há na língua  portuguesa um termo corrente para essa parte do corpo. A palavra "bunda" tem uma conotação pejorativa, um substantivo já adjetivado de  saída. Há  eufemismos como "traseiro" ou metonímias como "nádegas", "glúteos" etc...  Portanto, "bunda" é apalavra certa.   Muito bem; com todo o respeito, a bunda de Juliana  me deixou aparvalhado.  Não sei se esperava muito; só sei que fui tomado por  uma funda decepção. Não  sobre a beleza da bunda, pois é muito bonita, sim,  mas pelocho que de  realidade que me trouxe. Afinal, verificamos que era  apenas uma bunda e não  um enviado de Deus, era apenas uma moça que nos parece gentil, romântica bondosa como uma babá, mostrando o bumbum como um bebê recém-nascido. Ela sorri, parecendo dizer: "É só isso o que vocês queriam? Ora... pois aqui está minha bundinha..." Olhei o bumbum de Juliana por todos os ângulos, e nada aconteceu, sexual e filosoficamente. Confesso,  Juliana, com todo o respeito, queima gineicenas eróticas comigo mesmo,  com outros e nada senti.  .Pensei" Estou decadente, ou as uvas estão  verdes..." Mas, não, não era  isso. Bateu-me mesmo uma certa tristeza, de ver  aquela moça ali,  satisfazendo nosso desejo bruto e invasivo, esse  povo de onanistas e  sodomitas sempre desejando a mulher por trás. Senti um vazio ao ver um  segredo revelado, estragando com sua nudez meridiana a glória da moça da novela. Algo como água fria num sucesso, algo como a traição contra Zeca Pagodinho, no auge de sua ascensão. O mercado  estraga o prazer, programando-o. Toda a beleza do mito é justamente seu mistério inacessível, seu enigma não decifrado. Juliana da novela não é só  sua bunda.  Ela é a doce ingênua do subúrbio, a moça generosa, dadeira, mas honesta, com seu rosto redondo de brasileira, com largos quadris de boa mãe leiteira. Sua nudez não tem a norma perversa das playmates típicas. Falta-lhe a crua perversão das outras, gatas ferozes prometendo sexo selvagem. Não. Juliana  tenta rostos sacanas, mas só passa uma doçura  incontrolável, faltando-lhe a catadura zangada das punas ou sadomasoquistas. Daí, me bateu a verdade inapelável e cruel: a bunda  não existe. Só existe a idéia" de bunda, o conceito platônico de bunda. Isso. No caso de Juliana, o bumbum real destrói o bumbum imaginário. Sempre sonhamos com aquele bumbum adivinhado sob os vestidos na novela e ele tinha a multidimensão rica de uma metáfora. Ele era todos os bumbuns, ele era uma promessa de vida em nossos corações. Mas, diante do bumbum real, a vida perdeu o mistério, tudo se aquietou na paz da anatomia óbvia. O bumbum deixou de ser uma utopia e só restou o bumbum possível. Vemos, com clareza e realismo, que virou um bumbum  mortal, sem transcendência, que é apenas um bom bumbum brasileiro, que um dia cairá, como o PT. Por isso, me pergunto por que a bunda é nosso símbolo? Para os anglo-saxões são os seios, leiteiros, alimentícios. O bumbum para nós, ibéricos, é menos inquietante que a vagina; essa nos lembra fecundidade, essa nos coloca diante da responsabilidade da criação da vida, e até dos perigos da devoração pela fêmea dentada e potente. A vagina é um pénis embutido; a vagina é o "outro" e merece respeito. Já o bumbum, por infecundo, a reboque do corpo, tem uma imagem mais propícia para sacanagens sem perigo, além de ser uma herança do homossexualismo deslocado dos senhores portugueses diante da negras zulus nas senzalas. Por isso, afirmo que o bumbum de Juliana, por mais  caras perversas que ela faça na revista, é uma bundaromântica, familiar. O  rosto maternal de Juliana prejudica o desempenho de seu bumbum. No caso de Tiazinha ou da Feiticeira, a bunda tinha vida própria. Era mais importante que as donas. Muitas mulheres de bonitas bundas chegam ater  ciúmes de si mesmas e têm uma atitude envergonhada de suas formas calipígias. A mulher de bunda bonita caminha como se fossem duas: ela e sua bunda. Uma  fala e ninguém ouve; a outra cala e todos olham. A mulher de bunda bonita não tem sossego; está sempre autoconsciente do tesouro que reboca. A mulher de bunda bonita mesmo de frente está sempre de costas. A mulher de bunda bonita vive angustiada:  quem é amada? Ela ou sua bunda? Algumas bundas até  parecem ter pena de suas donas e quase Dizem "Olhem para ela também, ouçam suas opiniões, sentimentos... Ela também é legal..."Mas a verdade é econômica. A bunda hoje no Brasil é um ativo. Centenas, milhares de moças bonitas usam-na como um emprego informal, um instrumento e ascensão social. A globalização da economia está nos deixando sem calças. Sobrou-nos a bunda... nosso único capital.