29/07/2004

O presente é o grande trauma nacional por: Arnaldo Jabor

Esta cronica faz-me lembrar um país que eu conheço.

Sempre que venho a Nova York, o Brasil vira um sintoma em mim. Explico-me. Por mais que queira, não consigo esquecer os olhos de brasileiro com que vejo a cidade. Sou irremediavelmente verde-amarelo. O Brasil era (e é) para mim uma visão de mundo, vício que as gerações mais novas talvez não pratiquem.
Eu e meus amigos do cinema novo, da esquerda cultural, nós vivíamos o Brasil como uma viagem para o futuro, nunca como um "presente", um "hoje", mas sempre como um projeto, um processo que acreditávamos controlar.
Sempre que chego a Nova York, fico espantado por ver como ainda me habita um "sebastianismo" renitente, duro como um dente difícil de extrair. Eu achava (e se bobear ainda acho) que o Brasil era destinado a ser uma síntese entre o racionalismo "careta" do Ocidente e um Oriente negro musical nosso, com uma "malemolência revolucionária" mulata, sei lá... Mas, quando caio na 5ª Avenida, vejo como fica rasa essa sensação. Aqui vejo que americanos não acreditam em conclusões. Tese e antítese, tudo bem; sínteses, jamais.
Nos últimos anos, tivemos de rever muitas ilusões. Desde a queda do socialismo, caiu o mundo de minha geração e ficou claro que nossa idéia de "revolução" era uma estética, uma poética, nunca uma logística fincada no chão real. Muitos morreram dessa descoberta quando a vida dura do fim dos anos 70 começou a destruir os sonhos do absoluto, ou melhor, o "glamour" do absoluto.
A "revolução" era, para nós, uma cegueira para o presente político doloroso, era uma maneira de racionalizar o beco sem saída nacional.
Se nosso presente era pífio, se nossas famílias eram medíocres, nossos bolsos, furados, nossos políticos, estúpidos, nossos ditadores, brutais, nós éramos a gangue do futuro.
No plano neurótico pessoal, era uma forma de narcisismo utópico, uma maneira de esquecer a morte, um jeitinho de ser ateu, mas com paraíso e vida eterna. Deu no que deu. Estamos hoje com uma terrível ausência de ideologias possíveis para o país, embora seu diagnóstico nunca tenha sido tão visível.
Se os anos 80 já eram o início da desconfiança, os anos 90 foram a brutal chegada do "presente", o violento "desencantamento" do mundo. Como um tocquevillezinho do ano 2000, eu vejo aqui em Nova York a espantosa ligação deste povo com a realidade prática, uma radical recusa de qualquer "bullshit" (bosta de boi) que os iluda.
Daqui fica claro que a grande luta que se trava no Brasil é entre o incontrolável, o inevitável tempo presente e um futuro imaginado.
A direita usa a idéia de futuro como consolo para nosso atraso, na base do "só os pobres verão Deus". Por outro lado, os progressistas também se embaraçam numa "má consciência" paralisadora e não conseguem pensar fora de critérios negativistas antigos, poluídos por teleologias, lendas heróicas de classe, visões sacralizadas do povo, e falam do capitalismo como se ele fosse uma pessoa má e não o hegemônico modo de produção. Assim, patrulham qualquer tentativa de "ver de novo" o país, "anatematizando" muitas idéias como "impensáveis".
E isso fica sob uma luz insuportável na Times Square. Aqui só existe o presente _um cruel, claro, "enorme presente" que se sente sob os pés, uma falta de transcendência que, no entanto, resulta legitimada pela imensa riqueza da cidade. Enquanto sonhamos com um Brasil que nunca chega, aqui a utopia é hoje. Já foi conseguida e está sendo exportada para o mundo todo, violenta ou delicadamente.
Somos românticos e pobres, e eles são pragmáticos e milionários. Eles, "caretas" e obsessivos, realizam seus sonhos mais loucos (como provam suas pirâmides góticas, a tecnologia de ponta, a conquista do universo). Nós, malandros e imaginosos, não conseguimos nem reformar a Constituição de 88. Eles são uma equipe de 200 milhões de pessoas iguais, executando um projeto protestante sem fim.
Nós, 180 milhões de solitários _que nos julgamos diferentes, somos impotentes pela miséria ou ridículos pela ignorância. Eles buscam a felicidade numa "pursuit of happiness" que é feita de uma permanente insatisfação com suas conquistas, sempre à procura de mais lucro, mais eficiência, o que fez o mesmo Tocqueville, em 1831, perceber que eles, americanos, eram passados por uma leve "melancolia em meio à abundância".
Nós nos cremos felizes em nossa precariedade. O atraso cria a ilusão de que "algo virá" quando nada jamais virá do atraso iludido. No Brasil, há um clima romântico para anestesiar a população, sendo que os homens que mamam, roubam e pilham são os únicos práticos e crus, avalizados por aqueles que choram o Ayrton Senna, amam o Carnaval e acreditam ter uma alegria congênita.
Assim, temos muito a desaprender. Temos de desmobilizar nosso excesso de negativismo; qualquer positividade é vista com descrença (vide o Plano Real). É chique ser contra. A esperança é considerada uma ingenuidade. No Brasil, criticar o poder nos exclui e absolve. Nos EUA, a desconfiança do poder do governo pressupõe ações alternativas na sociedade, que sempre se autocrítica e muda.
Em todo meu pobre trabalho na TV e nos jornais, tento mostrar que somos tão ruins como o país, que o atraso não nos exclui como "vítimas" das elites, mas nos inclui no erro geral. Se alguma invasão é benigna, vejo com bons olhos a influência anglo-saxônica na administração da sociedade, um "ethos" protestante amenizando a mediocridade de nossos vícios portugueses. Será, ao menos, um "benefício" da globalização.
O grande trauma dos 90 foi a chegada do presente em nossa vida. Constatamos com dor que estamos "aquém" desse presente do mundo, que nosso problema não é falta de futuro, mas que ser subdesenvolvido é estar antes do "agora".
Por isso, sou tomado de inveja quando chego a Nova York. Vivem o país como seu território abençoado, seu reduto legítimo, construído pelo trabalho obsessivo. Eles têm orgulho dos EUA. Nós temos vergonha do Brasil.

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