19/07/2004

Meditações diante do bumbum de Juliana

Arnaldo Jabor  Publicado em 18 de maio de 2004  Versão impressa
Nos últimos dias, só houve dois assuntos nesse  bendito país: a gafe do Lula como jornalista e o bumbum de Juliana Paes na  "Playboy". Prefiro o bumbum de Juliana. Ia escrever sobre a babaquice do Lula, mas creio que  o outro assunto é mais palpável" do que esse governo especializado em  alternar lentíssimas  indecisões com arroubos ridículos, assembleísmos leninistas com gestos  bruscos que, em geral, têm de ser consertados  depois. Mas não adianta  repetir o óbvio para surdos. Vamos ao que interessa:  o bumbum era esperado  como um messias redentor, aguardado como a salvação do país neste momento  sem graça.  Políticos, bancários, eu, todos ansiávamos por esse  bumbum como por um  Maomé", um profeta. O que poderianos revelar esse  bumbum?  Corri para as bancas e comprei a "Playboy" sob o olhar debochado do jornaleiro que me reconheceu e perguntou se eu não ia levar o "The Economist  também. "Claro, claro...", respondi, vermelho.  Chego em casa, rasgo a capa de plástico com as mãos trêmulas, abro com uma sensação de pecado e esperança, e vejo Juliana Paes em seu esplendor.  Folheio a revista e caio numa perplexidade muda.  Antes de continuar, devo dizer que já escrevi sobre o bumbum da Feiticeira,  o bumbum da Tiraniza e continuo sem uma palavra apropriada. Não há na língua  portuguesa um termo corrente para essa parte do corpo. A palavra "bunda" tem uma conotação pejorativa, um substantivo já adjetivado de  saída. Há  eufemismos como "traseiro" ou metonímias como "nádegas", "glúteos" etc...  Portanto, "bunda" é apalavra certa.   Muito bem; com todo o respeito, a bunda de Juliana  me deixou aparvalhado.  Não sei se esperava muito; só sei que fui tomado por  uma funda decepção. Não  sobre a beleza da bunda, pois é muito bonita, sim,  mas pelocho que de  realidade que me trouxe. Afinal, verificamos que era  apenas uma bunda e não  um enviado de Deus, era apenas uma moça que nos parece gentil, romântica bondosa como uma babá, mostrando o bumbum como um bebê recém-nascido. Ela sorri, parecendo dizer: "É só isso o que vocês queriam? Ora... pois aqui está minha bundinha..." Olhei o bumbum de Juliana por todos os ângulos, e nada aconteceu, sexual e filosoficamente. Confesso,  Juliana, com todo o respeito, queima gineicenas eróticas comigo mesmo,  com outros e nada senti.  .Pensei" Estou decadente, ou as uvas estão  verdes..." Mas, não, não era  isso. Bateu-me mesmo uma certa tristeza, de ver  aquela moça ali,  satisfazendo nosso desejo bruto e invasivo, esse  povo de onanistas e  sodomitas sempre desejando a mulher por trás. Senti um vazio ao ver um  segredo revelado, estragando com sua nudez meridiana a glória da moça da novela. Algo como água fria num sucesso, algo como a traição contra Zeca Pagodinho, no auge de sua ascensão. O mercado  estraga o prazer, programando-o. Toda a beleza do mito é justamente seu mistério inacessível, seu enigma não decifrado. Juliana da novela não é só  sua bunda.  Ela é a doce ingênua do subúrbio, a moça generosa, dadeira, mas honesta, com seu rosto redondo de brasileira, com largos quadris de boa mãe leiteira. Sua nudez não tem a norma perversa das playmates típicas. Falta-lhe a crua perversão das outras, gatas ferozes prometendo sexo selvagem. Não. Juliana  tenta rostos sacanas, mas só passa uma doçura  incontrolável, faltando-lhe a catadura zangada das punas ou sadomasoquistas. Daí, me bateu a verdade inapelável e cruel: a bunda  não existe. Só existe a idéia" de bunda, o conceito platônico de bunda. Isso. No caso de Juliana, o bumbum real destrói o bumbum imaginário. Sempre sonhamos com aquele bumbum adivinhado sob os vestidos na novela e ele tinha a multidimensão rica de uma metáfora. Ele era todos os bumbuns, ele era uma promessa de vida em nossos corações. Mas, diante do bumbum real, a vida perdeu o mistério, tudo se aquietou na paz da anatomia óbvia. O bumbum deixou de ser uma utopia e só restou o bumbum possível. Vemos, com clareza e realismo, que virou um bumbum  mortal, sem transcendência, que é apenas um bom bumbum brasileiro, que um dia cairá, como o PT. Por isso, me pergunto por que a bunda é nosso símbolo? Para os anglo-saxões são os seios, leiteiros, alimentícios. O bumbum para nós, ibéricos, é menos inquietante que a vagina; essa nos lembra fecundidade, essa nos coloca diante da responsabilidade da criação da vida, e até dos perigos da devoração pela fêmea dentada e potente. A vagina é um pénis embutido; a vagina é o "outro" e merece respeito. Já o bumbum, por infecundo, a reboque do corpo, tem uma imagem mais propícia para sacanagens sem perigo, além de ser uma herança do homossexualismo deslocado dos senhores portugueses diante da negras zulus nas senzalas. Por isso, afirmo que o bumbum de Juliana, por mais  caras perversas que ela faça na revista, é uma bundaromântica, familiar. O  rosto maternal de Juliana prejudica o desempenho de seu bumbum. No caso de Tiazinha ou da Feiticeira, a bunda tinha vida própria. Era mais importante que as donas. Muitas mulheres de bonitas bundas chegam ater  ciúmes de si mesmas e têm uma atitude envergonhada de suas formas calipígias. A mulher de bunda bonita caminha como se fossem duas: ela e sua bunda. Uma  fala e ninguém ouve; a outra cala e todos olham. A mulher de bunda bonita não tem sossego; está sempre autoconsciente do tesouro que reboca. A mulher de bunda bonita mesmo de frente está sempre de costas. A mulher de bunda bonita vive angustiada:  quem é amada? Ela ou sua bunda? Algumas bundas até  parecem ter pena de suas donas e quase Dizem "Olhem para ela também, ouçam suas opiniões, sentimentos... Ela também é legal..."Mas a verdade é econômica. A bunda hoje no Brasil é um ativo. Centenas, milhares de moças bonitas usam-na como um emprego informal, um instrumento e ascensão social. A globalização da economia está nos deixando sem calças. Sobrou-nos a bunda... nosso único capital.

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