05/06/2005

A serpente que queria voar

Belissimo conto brasileiro

Cobras rastejam, mas eu gostaria de voar. Alto como as águias, livre, longe das tocas, dos ninhos promísquos e do próprio perigo que as águias nos trazem.
Passei mais de dois meses sem comer o que quer que fosse. Sapos, insetos, ovos, nada. Só podia pensar em voar, em construir meu ninho nas montanhas ou na mais alta das árvores; em mergulhar dos céus à busca de caça, como só as gigantescas aves de rapina o fazem.
Após muito meditar, sem encontrar solução para um tal problema, profundamente deprimido mas quase conformado, topei com uma lagarta pendurada num pequeno arbusto, dedicada à laboriosa tarefa de construir seu casulo. Voltou-me o apetite e a devorei sem compaixão, com casulo e tudo. Fez-me mal. Após tão longo jejum não se deve comer lagartas...
Naquela noite sonhei que subia a duras penas numa árvore íngreme e construía, eu mesmo, um casulo do qual, após longa espera, saía transformado em poderosa águia. Inquieto, acordei sobressaltado no meio da noite, incomodando as outras serpentes enrodilhadas a meu redor. "Começarei meu casulo amanhã mesmo", decidi então, antes de adormecer novamente.
Procurei uma árvore frondosa em local seguro. Precisava de muito preparo para a construção de meu casulo, mas estava seguro de que sairia de lá transformado em poderosa águia.
Passei dois meses a me alimentar profusamente. Não comentei meu projeto com quem quer que fosse por temor de ser taxado de insano, egoísta ou megalômano; ademais, precisaria de paz, tranqüilidade e segurança para o período da metamorfose.
Quando temos uma idéia fixa, faltamos, às vezes, com nossos deveres para com o grupo. Procurei comportar-me de forma a mais natural possível, a fim de não despertar suspeitas. Mas as exigências internas de minha natureza em busca de mudanças, por momentos excediam minhas forças e me tornavam quase que totalmente inapto ao trabalho no grupo.
Minhas coisas no mundo ofídico tornaram-se tão desarranjadas que, ao exigirem de mim excesso de atenção, dificultaram cada vez mais, quase inviabilizando mesmo, o cumprimento de meu projeto pessoal. Com tudo isso consegui construir meu casulo! Tosco. Frágil. Transparente como os ovos das serpentes. Mas era tudo de que dispunha. Não sabia quanto tempo levaria para que a metamorfose se completasse. Meditava.
No primeiro mês, farto que estava de tudo e de todos no mundo em que até então vivia, só podia pensar em técnicas de vôo e mergulho, em outros céus, em novas paisagens, enfim, numa vida nova. Naquele mês fiquei cego. Não tinha importância, estava seguro de que me nasceriam olhos de águia.
A partir do segundo mês voltei a pensar em minhas irmãs serpentes e em como faria para ensinar-lhes a realizar também a sua metamorfose, para dizer a todas quanto seria melhor o mundo se, ao invés de disputarmos e devorarmo-nos uns aos outros, passássemos a cooperar e viver em harmonia, ajudando-nos uns aos outros na nobilíssima tarefa da auto-superação em prol de um mundo melhor. Minhas escamas caíam. Não me importava, para que servem escamas a quem breve estará a voar?
Assim se passavam os meses, cada qual com uma nova preocupação e uma nova perda física.
No oitavo mês começaram a nascer-me penugens. Numa ocasião, algumas pequenas serpentes - crianças, naturalmente - galgaram a árvore em que estava encastelado e, por pura brincadeira, derrubaram meu casulo ao solo e o destruiram.
Agora estou aqui, nu, cego, esquecido do idioma das serpentes, incapaz de locomover-me por conta própria, me escondendo da luz e chorando nas sombras o meu fracasso. Quase cheguei onde ninguém antes de mim havia sequer pensado ser possível ir....
Todavia, permaneço otimista. Sei que um dia uma serpente terá êxito onde fracassei. Quase posso vê-la a descer dos céus trazendo no bico sua mensagem de vitória, de paz e de um mundo melhor para todos.

Sem comentários: