08/08/2007

DIAS CONTADOS - ABONOS DE FAMÍLIA

Por: Alberto Gonçalves
sociólogo

Cavaco Silva pediu políticas de estímulo à natalidade. O Governo subscreveu o apelo. A Associação de Famílias Numerosas (AFN) aplaudiu-o. E a Associação de Famílias Minúsculas, que fundei anteontem, escusa-se a comentar.
Há razões válidas para que Portugal (e a Europa) se aflijam com a baixíssima natalidade em vigor. Razões "economicistas", com vista ao futuro da Segurança Social. Razões "xenófobas", dado o abismo entre as taxas de procriação dos europeus "velhos" e as taxas dos europeus "novos" e da imigração em geral. Razões "ideológicas", relacionadas com o "valor" que a família dita tradicional representa para os conservadores, por exemplo. Não é arriscado presumir a razão que move Cavaco.
Já a AFN defende os incentivos à natalidade apenas porque sim. Ou, melhor dizendo, porque beneficia os respectivos membros. Em abstracto, nada justifica que as proles abundantes mereçam do Estado simpatia adicional. E é perigoso que o Estado entenda discriminar positivamente (ou negativamente) os agregados em função da sua semelhança quantitativa com o Rancho Folclórico de Penalva do Castelo.
Convinha que as famílias, vastas ou diminutas, resultassem de escolhas livres e não da adaptação interesseira às decisões do Estado. O qual, aliás, não se deveria meter onde não é chamado. Nem, para o caso, onde de facto o chamam. Salvo situações de profunda estupidez, ser mãe solteira ou pai de dezasseis petizes deriva de opções pessoais, sem direito legal a sanção ou recompensa. No máximo, e de acordo com o IRS de cada um, acho legítimo que os filiados na AFN reivindiquem um pequeno subsídio - não para o sustento dos filhos, mas para a aquisição de contraceptivos.

A PALESTINA AINDA NÃO VENCEU
Parece que o momento de maior efervescência da convenção do Bloco de Esquerda, realizado no fim-de-semana, sucedeu quando uma embaixada de agrupamentos palestinianos foi recebida aos gritos de "Palestina vencerá!". Duvido que o entusiasmo seja recíproco. Não consta que os congressos do Hamas e da Fatah se comovam com as causas internas do BE, e que os seus delegados se levantem a berrar "O Zé faz falta!" ou "Não ao offshore da Madeira!".
De resto, a devoção altruista do Ocidente por aquele pedaço específico da Terra não se esgota nos malucos da extrema-esquerda. Antes pelo contrário. Por tudo o que é jornal e noticiário da Europa, o 40º aniversário da Guerra dos Seis Dias viu-se transformado na evocação dos quarenta anos do "sofrimento palestiniano". Mais: a própria guerra terá sido um erro cometido por Israel, o seu desfecho uma vitória de Pirro, e as suas consequências uma "calamidade" até para o "estado judaico". As aspas prendem-se com um recente, e assaz citado, editorial da insuspeita "The Economist", publicação capaz de imprimir uma irracionalidade recorrente face a Israel e manter-se insuspeita.
Não é preciso acenar com documentos recém-descobertos, como fez o historiador Michael Oren, para provar que as pretensões do Egipto (e da Jordânia, e da generalidade dos países mais ou menos vizinhos da "nação sionista") em 1967 se limitavam a um pormenor quase ternurento: a erradicação de Israel e a chacina ou, nas versões humanitárias, a expulsão dos israelitas. Tradução: Israel vencia a guerra ou desaparecia. Israel venceu e permaneceu um estado civilizado no meio da barbárie. Para muitos, eis um erro imperdoável.
G8
Um outro mundo não é possível. Um mundo em que se desconfie de campeões dos oprimidos que ostentam, com orgulho, os símbolos dos piores totalitarismos. Um mundo em que estadistas democraticamente eleitos se possam encontrar na Alemanha ou onde quiserem, sem o acompanhamento de hordas de selvagens. Um mundo em que selvagens com tempo a mais e higiene a menos não atinjam o popular estatuto de "activistas", e no qual a destruição de propriedade e a agressão física não passe por afirmação politica. Um mundo em que, após demorado processo de lavagem e desparatização, haja coragem para acomodar os "activistas" no seu habitat natural: as jaulas. Um mundo em que o presidente dos EUA não solte um apalermado "Bono para presidente!" à passagem de uma vedeta "rock". Um mundo em que se despreze a autoridade de cançonetistas notoriamente boçais para opinar acerca do destino do Homem. Um mundo em que não se condicione o destino do Homem a "ameaças climáticas" e palpites sem fundamento científico. Um mundo em que a globalização seja avaliada pela riqueza global que comparativamente gera e não pela "desigualdade" que as alucinações de tantos lhe atribuem. Um mundo em que as principais conquistas do mundo não fossem odiadas por aqueles que delas mais usufruem. Um mundo que fizesse sentido.

ESCOLA DE RECONDUÇÃO
Com despacho assinado pelo engenheiro Sócrates (duas palavras que não voltarão a ser associadas sem receio de interpretação irónica), o Governo reconduziu a directora regional de Educação do Norte no cargo. Segundo o presidente da distrital socialista do Porto, parece que a decisão se deve à "competência" da senhora. Apesar dos protestos da oposição à direita e dos descrentes de serviço, não vejo que outros motivos tenham fundamentado a recondução.
Que critérios se pode invocar para pôr em causa a competência da senhora? Não serão, decerto, critérios técnicos. Como mostram os testes de aferição de português e matemática, experiências avançadas que premeiam o puro erro, a função prevista do ensino público faleceu há muito, e o cadáver não depende particularmente da DREN. Entidades assim perpetuam-se para que o poder político distribua funcionários e para que os funcionários retribuam o favor. Antes do prof. Charrua, a sra. Margarida Moreira, detentora de um passado impressionante enquanto educadora de infância e sindicalista, já despachara cinco criaturas, por aquilo que ela toma por desrespeito ou por aquilo que o Governo a manda tomar por desrespeito. A sra. Margarida faz, e bem, o que dela se espera, afinal uma apropriada definição de competência e uma virtude que não tem preço. Ou tem: o salário de directora regional. Por mais uns anos.
CRIME DELE, NOSSO CASTIGO
Começou o julgamento de António Costa (não é esse), o alegado homicida de Santa Comba Dão (não é esse). O sr. Costa é um antigo cabo da GNR e, apesar do barulho em seu redor, não faço ideia se está inocente. Se está, o caso é uma vergonha. Se não está, o caso é uma vergonha maior.
A excitação e a pressa levaram a imprensa a chamar o sr. Costa de "serial-killer". À portuguesa, faltou especificar. Um assassino em série competente não nega crimes em tribunal: confessa os que cometeu, junta-lhes alguns que não cometeu (para compor o currículo), enriquece-os com pormenores macabros e a seguir sorri à plateia, consolado e doido. Medroso, o típico assassino nacional admite em privado, para em público se encolher, negar tudo e desatar a distribuir lamúrias.
À imagem do verificado em tantos ramos de actividade, também no assassínio em série não conseguimos alcançar os níveis dos países desenvolvidos. Concedo, não é exactamente uma razão de queixa: a vida real passa bem sem um certo tipo de matanças indiscriminadas. O chato é que a vida ficcional não. Um destes dias, a propósito do sr. Costa, Ferreira Fernandes lembrou aqui no DN que Portugal não possui uma literatura policial. Concordo e acrescento: nem literatura, nem cinema, nem nenhuma forma de expressão artística que se tente alimentar, com proveito, do vital tema do crime.
Quer dizer, criminosos nós temos. Mas são, quase invariavelmente, ex-polícias, camponeses alcoolizados, débeis mentais e vítimas do rendimento mínimo. Por sua vez, o móbil dos crimes prende-se normalmente com terras, águas, ciúmes, drogas, frustração sexual e outros elementos telúricos que não dão enredo ou, o que é pior, dão enredos péssimos. A acreditar nas escutas ao arguido, o sr. Costa matou três raparigas porque "queria um beijo" e "andava stressado". Pois é, nascer, e morrer, em Famalicão ou Telheiras não é o mesmo que nascer, e morrer, em Cleveland ou São Petersburgo. Psicopatas autênticos suscitam análises e parábolas sobre o mistério da condição humana. Os nossos retratam a pobreza de espírito: perante a prisão iminente, o maior desgosto do sr. Costa consiste em não regressar à Casa do Benfica.
Com personagens e tramas destas, a ficção pátria vem-se arrastando-se dos folhetins de cordel ao neo-realismo e ao cinema contemporâneo por entre vinganças, invejas, violadores de bairro, familiares desavindos, toxicodependentes confusos e a miséria literal e criativa. Em suma, um aborrecimento de morte. Embora haja relativa perícia em tornar, como os portugueses tornam, a morte aborrecida.
António Costa percebeu que não ganha Lisboa com a folga desejada sem fingir questionar, ao menos um bocadinho muito pequenino, o aeroporto da Ota. Mas uma coisa é simular objecções a um projecto duvidoso, assente em argumentos anedóticos e num lamaçal. Outra coisa é julgar que a defesa de um retrocesso geral no sistema de transportes constitui um bom mote para a campanha. Quando António Costa aparece a pedalar por Belém e a prometer rasgar a cidade com "ciclovias", é chegada a altura de os seus assessores lhe aconselharem moderação.
Primeiro, há o problema da coerência política: ninguém acredita que o antigo "número dois" do exacto Governo que quer cercar a capital com terminais aéreos e linhas de TGV seja um adepto indefectível do ciclismo. Depois, há o problema do interesse comum: ninguém aspira a trocar o automóvel pela bicicleta na sua rotina diária.
Vale ao dr. Costa que os demais candidatos também partilham a aparente obsessão por sujeitar as massas a meios de locomoção arcaicos e cansativos. Ler as diversas propostas eleitorais é antecipar uma intrincada teia de ruas fechadas ao trânsito, "corredores verdes", "passadiços", "eixos pedonais", "faixas cicláveis" (?), etc. A aversão dos putativos autarcas lisboetas aos transportes comuns terá começado no momento em que Marcelo Rebelo de Sousa se lançou ao Tejo, numa subtil tentativa de demonstrar a inutilidade de carros e cacilheiros.
Mas nem o presciente prof. Marcelo adivinharia o fervor ruralista e ecológico que hoje domina a corrida à CML. Além de procurarem regular o tráfego urbano pelos padrões de 1935, os concorrentes sonham com colectividades de bairro, mercearias de esquina, teatro nas ruas, heranças árabes, "pulmões" florestais, "agricultura urbana" e, eu fique ceguinho, o combate municipal ao aquecimento global. Um terço das propostas de governação camarária resume-se a este Manifesto do Atraso de Vida, assumidamente "giro" e naturalmente inviável. Os restantes dois terços são banalidades, que oscilam entre a "devolução de Lisboa" aos lisboetas ou ao rio.
Sugiro um compromisso: devolva-se de facto Lisboa (ou o matagal que dela sobrar) ao rio e, já que a finalidade é convertê-los à força aos ideais da Quercus, mude-se os lisboetas para a Albânia, o Nepal ou qualquer lugar assim "pedonal", "ciclável" e rústico. Não fosse o aeroporto e a Ota seria uma solução igualmente válida.
LISBOA ANTIGA UMA FACTURA PESADA
A custo, a imprensa britânica ainda tolerou que os agentes da Polícia Judiciária não se dignassem informá-la, a intervalos regulares, de todos os avanços, recuos e irrelevâncias em volta do desaparecimento da "pequena Maddie". Mas a imprensa britânica não tolera que, em vez de procurarem Maddie, ou - o que seria perfeito - convocarem conferências a cada dez minutos, os agentes da PJ demorem duas horas num almoço, para cúmulo num restaurante caro, especializado em mariscos e permeável a fotógrafos ingleses. Aparentemente, as chefias da PJ concordam com a imprensa britânica e, a fim de evitar vergonhas, as fotografias da almoçarada foram apreendidas. De futuro, os polícias que tentem os couratos.

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