08/08/2007

Dias contados

 

 Por : Alberto Gonçalves
CELEBRAR A INDIGÊNCIA
Com o alegado fim de entreter os emigrantes, a RTP enviou Júlio Isidro e Roberto Leal ao Luxemburgo. Crueldades de lado, nunca percebi a associação do Dia de Portugal com o Dia das Comunidades Portuguesas. Entre parêntesis, não percebo igualmente o que faz Camões no meio da pompa, embora esse seja um assunto diferente.
Aqui, o assunto é a singular leveza com que se comemora, em simultâneo, as virtudes da pátria e o facto de regularmente haver quem foge da pátria em busca de uma vida decente. Que se saiba, as inúmeras pessoas que empurrámos - e continuamos a empurrar - para o exterior não partiram devido aos encantos e oportunidades que Portugal lhes proporcionou. Partiram porque Portugal chafurda metodicamente nos arredores da pobreza, e um académico ou um operário da construção civil tem dez vezes mais possibilidades de prosperar em Boston ou em Barcelona.
Claro
que, conforme dizia Tevye, em "Um Violino no Telhado", e o prof. Salazar pacientemente nos explicou, não é vergonha ser pobre. Só que, ao contrário do prof. Salazar, Tevye acrescentava: "E também não é orgulho nenhum." É absurdo negar a mal remediada pelintrice indígena, que uns suportam por cá e outros, movidos por superior desespero ou coragem, não. Mas é um absurdo maior exaltar, na mesma data, a nossa imaginária grandeza e as vítimas da nossa real penúria.
Se houvesse um mínimo de pudor, a relação do Estado com os emigrantes resumir-se-ia à assistência consular, aliás em acelerado declínio. Servir-se deles para proclamar a "vocação universalista" e façanhas afins é, além de cínico, um involuntário exercício de comédia. O "universalismo" português advém de uma deplorável evidência: contas feitas aos sacrifícios e aos salários, milhões de portugueses preferem algum lugar do resto do mundo ao país. E usar o Dez de Junho para publicitar isto é um disparate que nem o melancólico discurso de Cavaco atenuou.
Segunda-feira, 11 de Junho
AS CONVICÇÕES DE UM HOMEM
Em declarações ao "Expresso", Mário Soares confessou uma sincera admiração por ditadores (Chávez, um "homem de convicções") e trapaceiros (Lula). Do que ele não gosta é de regimes livres, capitalismo, globalização, Ocidente, Blair, Bush e americanos em geral (os "gringos").
Nenhuma novidade. Há anos que o dr. Soares profere extravagâncias assim sem abalar o seu prestígio. Curiosamente, desta vez meio mundo reparou no último "Expresso" para descobrir, com espanto, que o dr. Soares não envelheceu bem.
O espanto é capaz de ser excessivo. O lamento, não. Nunca tendo sido de esquerda, também nunca partilhei da raiva que a direita dedica ao dr. Soares, a pretexto da descolonização, ou da inépcia governativa, ou, enquanto PR, das ingerências no "cavaquismo". À semelhança de milhões, eu acreditava que a determinante acção do dr. Soares durante o PREC o definia melhor que os posteriores pecadilhos e erros crassos.
Há muito que custa manter a crença intacta. Com o tempo, e as sucessivas atoardas, uma pessoa vai duvidando se o dr. Soares actual é uma triste degenerescência do democrata de 1975, ou se o dr. Soares de 1975 foi, afinal, um desvio oportunista e estratégico face à natureza radical do senhor que por aí anda, a produzir opiniões grotescas e a desiludir velhos fiéis. Infelizmente, não é de hoje que o fundador do regime se aproximou do pensamento (digamos) de Boaventura Sousa Santos. Felizmente, hoje aproxima-se do respectivo descrédito.
Terça-feira, 12 de Junho
O PREÇO DA DECISÃO
A benefício da candidatura de António Costa e da popularidade do eng. Sócrates, o Governo adiou por seis meses a confirmação da Ota. Perante a dádiva, a oposição entrou em delírio, não sei se por convicção nos súbitos méritos da alternativa Alcochete ou por saudades de uma boa pândega.
No meio dos bizarros festejos, o dr. Campos e Cunha ressuscitou para defender a combinação da Portela com um novo, e menor, aeroporto. A hipótese, que o Governo obviamente nem coloca, parece sensata. Porém, como nesta matéria ninguém evita um toque de excentricidade, o antigo ministro de Sócrates acrescentou logo que é preciso decidir até ao fim do ano, pois "começa a ser um pouco embaraçosa, até em termos internacionais, a incapacidade do país para tomar decisões".
Os "termos internacionais" são um conceito vago. Talvez o dr. Campos e Cunha tenha informações seguras de que nas ruas de Paris e de Chicago os avanços e recuos da Ota suscitem farta galhofa. Ou de que nos corredores das altas instâncias, da ONU e da NATO à UE e à FIFA, circula uma quantidade de anedotas alusivas sem paralelo na própria DREN.
De qualquer modo, eis um excelente motivo para nos despacharmos. Por interessantes que sejam as reflexões acerca dos solos, dos ventos, do relevo, dos acessos e, não esquecer, das verbas, tais minudências perdem importância quando comparadas com o que de facto conta: a imagem do país no estrangeiro. E se o estrangeiro nos dá seis meses para escolher a localização do aeroporto, convinha ultrapassar polémicas e chegar depressa a um consenso. Vital é não ficarmos mal lá fora.
E não se vê razão para nos limitarmos ao ramo aeronáutico. Podíamos adiantar serviço e poupar embaraços futuros, decidindo em quinze dias tudo o que houver para decidir nos próximos anos. A regionalização? Ouça-se o povo, mas decida-se. O casamento de "gays"? Ouça-se o povo, os noivos, a Opus Gay e a Opus Dei, mas decida-se. A legalização da bestialidade sexual? Ouça-se o povo, os perpetradores, os veterinários e os animais, mas decida-se. Uma candidatura às Olimpíadas de 2044? Ouça-se o povo, os fundistas do Sporting e decrete-se a construção de dezasseis novos estádios, mas, pelo amor de Deus, decida-se: os olhos dos outros estão postos em nós.
Não
falha: o atávico pavor do ridículo leva os portugueses a um ridículo maior. Estranhamente, esse não os embaraça. Nem em termos internacionais, nem, o que nos sai mais caro, em termos nacionais.
Quarta-feira, 13 de Junho
POBRES E BEM-AGRADECIDOS
O alegado roubo do relógio presidencial serviu para desviar a atenção das multidões que saudaram Bush na Albânia, um fenómeno que a esquerda não consegue explicar. Ou talvez não queira.
Até porque é simples. Em parte, a excitação em volta de Bush (ou dos EUA) representa um agradecimento pelo passado: a digressão de Bush pelo Leste europeu coincidiu com o vigésimo aniversário da exortação de Reagan em Berlim (a lendária "Destrua este muro, sr. Gorbachov!"), que sobreviveu como símbolo do tombo soviético. Em parte, a excitação em volta de Bush (ou dos EUA) representa as expectativas de futuro. Aquela gente é agora muito mais livre do que já foi e muito menos abonada do que pretende vir a ser. E se o modelo da liberdade política lhes chegou da América, é à América que eles reclamam o crescimento económico. No fundo, os albaneses nas ruas pediam capitalismo, um espectáculo que naturalmente choca o Ocidente capitalista.
A experiência da miséria é essencial à valorização da riqueza. A experiência da riqueza é essencial à depreciação das suas causas. Um dia, caso a vida lhes corra bem, os albaneses receberão o presidente dos EUA com vaias e sem necessidade de o aliviar de um relógio de cinquenta euros.
Quinta-feira, dia 14
MARCAR O PONTO
Não tenho nenhum problema com o dr. Charrua. De tal maneira, que quando instituí, por força da lei, o relógio de ponto, ele ficou dispensado de marcar o ponto." As palavras são de Margarida Moreira, directora regional de Educação do Norte, em entrevista ao DN. Ler os desabafos da senhora é compreender de que modo uma alma compassiva é fustigada pelos baixos instintos da humanidade.
Veja-se o exemplo do "ponto". O "ponto", imposto à DREN "por força da lei", vigora lá dentro segundo a infinita gentileza da sra. Margarida, que sujeita os funcionários problemáticos ao rigor horário e isenta os restantes da pontualidade. O princípio é sublime. Apenas não prevê a ingratidão da espécie, que conduz ao abuso. O imoral prof. Charrua, um dos privilegiados do "ponto", reagiu à deferência com uma anedota sobre o eng. Sócrates. Uma anedota, vírgula. A sra. Margarida, atenta, esclarece tratar-se de "um insulto ao cidadão José Sócrates, que além de cidadão é o primeiro-ministro de Portugal." E um insulto tão reles que se dirige a um cidadão e atinge um governante merece quinze vergastadas públicas e o degredo. A sra. Margarida, caridosa, optou por um meigo processo disciplinar. Alguém lhe agradeceu? Pelo contrário, forças malignas iniciaram uma "campanha difamatória", que "ataca" a DREN para "chegar" (expressões dela) à pobre directora.
Claro que "durante dois anos", a sra. Margarida, incansável, "mexeu em muitos interesses". Claro que, embora não goste de se "vitimizar como mulher", a sra. Margarida, condoída, sente que os ataques não aconteceriam se ela "fosse um homem". E claro que há "gente a aproveitar a boleia para tentar alguma coisa". Quem? A sra. Margarida, tímida, não revela as fontes da "campanha", mas menciona de passagem os meios: metódica, ela guarda "tudo o que tem saído na comunicação social, nos blogues, ofícios, em tomadas de posição, em artigos de opinião".
Artigos de opinião? Conheço casos. Quanto a mim, e antes que surjam equívocos a propósito de crónicas anteriores, juro não ter sequer sonhado em "atacar" a DREN, "chegar" à sra. Margarida, "tentar alguma coisa" com ela e ainda menos tomar em consideração a sua feminilidade. Isso é próprio de criaturas com problemas, justamente forçadas a marcar o ponto.
Sexta-feira, dia 15
A FACA OU O FAX
Os alunos de Medicina da Universidade de Coimbra (UC) não querem fazer o exame final de curso. A solução comum seria trocarem de curso, de carreira, de escola ou de cidade. A solução folclórica consiste em protestarem até a direcção da UC invocar cansaço e desistir do exame. Sendo (suponho) portugueses, os finalistas escolheram a segunda. Por azar, a direcção teima em não ceder, pelo que os eventuais futuros médicos ponderam "outras formas de luta, mais ao desagrado do corpo docente".
Não desejo perturbar a ponderação, e nem digam que vão da minha parte, mas mirem-se no exemplo vindo do Norte, onde um discente de Direito da Universidade do Minho esfaqueou um professor por discordar de um pormenor curricular. À primeira vista, a navalhada parece-me uma forma de luta suficientemente desagradável para o corpo docente (e para o corpo de cada docente). Se é verdade que o professor em questão levou diversos golpes sem perder a vida nem, a crer nas notícias, o sentido de humor, isso não vos deve desmotivar. Um estudante de Direito encontra-se mais habilitado para o julgamento que para o crime. Um estudante de Medicina não deixará ninguém a rir. E dado que o faquista do Minho foi, para já, mandado em paz, o julgamento afigura-se fácil. Tão fácil quanto enviar o exame por fax, aliás uma terceira solução a considerar.
Sábado, dia 16
O REFUGIADO DO PÂNTANO
António Guterres ambiciona transformar a Europa num "asilo" (sic). À falta de melhor, eis uma utilidade possível. Desde que ultrapassados os obstáculos logísticos. Numa perspectiva optimista, sessenta por cento dos regimes da Terra são ditaduras, sob as quais se arrastam quase quatro mil milhões de desgraçados. Admitindo que dez por cento aspiram à bonança europeia (e admitindo, por omissão, que os outros noventa por cento se afeiçoaram à barbárie), teremos em breve 400 milhões de refugiados às portas, o que praticamente duplicaria a população do continente. Complicado? Para Guterres, célebre pelas noções impressionistas de aritmética, tudo se resolve com "abertura", "integração" e lirismos do género. Não esquecer: os refugiados não são números, são pessoas, uma divisa cujos resultados os portugueses verificaram antes de Guterres, ele mesmo, se refugiar no cargo que brilhantemente desempenha.

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