20/08/2005

O enigma do poder sem responsabilidade nas doze economias do euro

A ler com atençao

Por:
Paul De Grauwe*

A solução é um governo europeu com responsabilidades políticas e um parlamento com poderes legislativos. O contraste entre a gestão macroeconómica aplicada nos EUA e a adoptada na zona euro nos últimos cinco anos não podia ser maior. Com efeito, a actuação do Banco Central Europeu (BCE) tem-se pautado pela ponderação e cautela na manipulação das taxas de juro – que não sofreram alterações ao longo de quase dois anos –, por oposição à postura da Reserva Federal norte-americana, cujas decisões denotam uma elevada dinâmica. O panorama é semelhante no que concerne aos défices orçamentais agregados da zona euro, que se têm mantido inalterados desde 2001, ano em que a recessão se instalou. Os EUA, ao invés, transitaram de uma situação de excedente para um défice superior a 5% do PIB.A pergunta que se coloca é – qual a origem destas diferenças? Uma passa, forçosamente, pela diversidade da zona euro, cujos elementos ostentam condições económicas extremamente diversas. Ora, isto dificulta a tarefa das autoridades da zona euro quando se trata de obter consensos para as políticas monetárias e orçamentais, bem como para actuar rapidamente no caso de mudanças no panorama económico. Todavia, a explicação não pode ficar por aqui. O poder das ideias é, também ele, um aspecto fundamental.Nas palavras de John Maynard Keynes: “Regra geral, os pragmáticos são escravos de um qualquer defunto economista�. Na verdade, os pragmáticos de Frankfurt tornaram-se escravos de uma teoria que nos diz que a origem dos ciclos económicos está nos choques na área tecnológica – choques de produtividade – e na constante mutação das preferências. Neste contexto, o BCE pouco pode fazer. Se tentar “afinar� a economia, ver-se-á a braços com mais inflação, logo, o melhor é estabilizar os níveis dos preços. Ao fazê-lo, não só irá minimizar os efeitos dos choques enunciados como contribuirá com a melhor solução ao alcance de um banco central no que toca à promoção do crescimento. Tudo o mais compete aos governos resolver – se pretendem mais crescimento, que introduzam reformas estruturais. Nesta óptica, é perfeitamente possível abdicar de uma política orçamental que tenha por meta estabilizar a economia. Já para os pragmáticos de Bruxelas, o melhor que os governos podem fazer é batalhar por orçamentos equilibrados.No caso dos pragmáticos de Washington, a influência a que estão expostos releva de ideias totalmente distintas. Mais concretamente, encontram-se enraizadas no pensamento keynesiano. Nesta perspectiva, além dos choques de produtividade, existem ainda os choques da procura. Ou seja, são os “espíritos animais� – ciclos de optimismo e pessimismo – que vão capturar tanto os consumidores como os investidores. Estes ciclos têm intrínseco um forte elemento de profecia que se irá cumprir. Quando impera o pessimismo, as partes citadas reduzem a despesa, o que leva à diminuição do rendimento e da produção, validando o seu pessimismo. Quando o optimismo fala mais alto, as mesmas partes aumentam a despesa, contribuindo para o crescimento da produção e do rendimento, legitimando o seu optimismo.À luz da lógica keynesiana, a responsabilidade da banca central vai além da simples estabilização dos preços. Há movimentos da procura que não podem ser estabilizados visando somente a taxa de inflação e, segundo a mesma teoria, cabe ao governo contrariar essas cambiantes nas preferências dos consumidores e dos investidores mediante a manipulação do orçamento, mesmo que este ultrapasse os míticos 3%, tão diabolizados pelos políticos europeus.Todavia, a teoria que hoje rege os decisores da Europa é a que, na prática, prevalece – pelo menos no mundo académico. E, apesar dos seus diversos epítetos, chamar-lhe-ei aqui “nova teoria clássica�. De facto, é intrigante que as autoridades dos EUA desprezem uma teoria desenvolvida por economistas norte-americanos, quando a Europa a encara com a maior seriedade. Também é um enigma a razão por que o “keynesianismo�, tão desacreditado no seio da comunidade académica, continuou a ditar as decisões das autoridades norte-americanas nos últimos dez anos, para mais quando apresenta resultados.Em todo o caso, ainda é cedo para dizer qual das teorias será capaz de garantir o crescimento e a estabilidade pretendidos. Mas em vez de analisar ambas as hipóteses, prefiro concentrar-me na forma como a “nova teoria clássica� tem sido usada para legitimar o governo da zona euro. Tomemos as políticas monetárias como exemplo. O BCE decidiu unilateralmente demitir-se de qualquer responsabilidade ao nível do desemprego, relegando-a para os governos nacionais. E fê-lo escudando-se na “nova teoria clássica�, que diz ao banco central para ignorar a classe política e focalizar-se na estabilidade dos preços. Segundo a mesma, não há melhor estrutura de governo do que aquela que isola o BCE desses mesmos políticos, colocando-o numa “torre de marfim�.No entanto, ao remeter essa responsabilidade para os governos nacionais, o BCE cria, no fundo, um problema político. Se os políticos nacionais tiverem de assumir, sozinhos, a responsabilidade pelo desemprego, se forem exonerados das suas funções, então, parece-me natural que se socorram de todos os instrumentos ao seu alcance – designadamente os monetários – para combater este problema.No que respeita às políticas orçamentais na zona euro, o cenário pouco difere. Quando a Comissão Europeia (CE) desencadeia um procedimento em nome de uma teoria que glorifica orçamentos equilibrados e visa forçar os governos nacionais a reduzir a despesa e/ou aumentar os impostos, na prática, demite-se de toda e qualquer responsabilidade pelas suas decisões, imputando-a aos governos em causa. Todavia, quando estes acatam o procedimento da CE, reduzindo a despesa e aumentado os impostos, correm o risco de perder a preferência do eleitorado nas eleições seguintes. A CE, por seu turno, não enfrenta qualquer tipo de escrutínio pelos seus actos.Posto isto, pode dizer-se que a legitimação da estrutura de governo da zona euro pela “nova teoria clássica� apenas mascara as respectivas fraquezas, que têm única e exclusivamente a ver com o facto de o seu governo ter sido entregue a instituições europeias destituídas de responsabilidade política, logo, ilibadas das consequências das suas decisões. Exactamente o oposto do que acontece com os governos nacionais, que não só perderam os seus instrumentos macroeconómicos como têm de justificar perante os eleitores todas as falhas da gestão macroeconómica à escala europeia.A má qualidade deste governo tornar-se-á, a breve trecho, insustentável. Assim, resta somente uma solução para este enigma – pelo menos para aqueles que, como eu, querem preservar a união monetária. Isto é, a criação de instituições, como um governo europeu com responsabilidades políticas e um parlamento com poderes legislativos, capazes de desenvolver políticas macroeconómicas e de se responsabilizar pelas suas decisões e pelas tomadas pela entidade independente que é o BCE. Pois bem, tudo isto requer uma forte união política. No entanto, é forçoso reconhecer que, por ora, o sentimento que vigora na Europa não se compadece com esta solução.*Professor de Economia Internacional na Universidade de Lovaina, Bélgica.

Exclusivo DE/Financial Times
Tradução Ana Pina

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