20/03/2008

Razões pelas quais desconfio da lei do tabaco.

Um novo fantasma assola a Europa. Não é o comunismo, mas inspira-se num dos seus princípios: a falta de autonomia do indivíduo e a sua subjugação ao colectivo. De acordo com esse fantasma temos de ser saudáveis, da mesma forma que temos de ser magros, neuróticos, "workaholics" e modernos. Faz parte da cartilha não fumar e ser quase a favor da pena de morte para quem fuma; não comer gorduras nem açúcares, frequentar um ginásio e achar piada quando uma empresa pública decide chamar 'Phone-Ix' a uma rede de telemóveis virtuais. Isto não tem nada a ver, dirá o leitor. Tem tudo, digo eu que não fumo, como o menor número de gorduras possível, nado piscinas para trás e para a frente só com o objectivo de não ser gordo, trabalho imensas horas e acho alguma piada ao 'Phone-Ix'. O que liga isto tudo é a nossa programação. Eu sou sensível a essa programação e já me sinto mal se comer uma feijoada ou um cozido; se não fizer exercício físico fico com problemas de consciência e não tenho a coragem suficiente de dizer aos senhores dos CTT que, antes de tudo, eles são um bocado ordinários e que, à frente das minhas filhas, palavras daquelas não se usam. Este fantasma que nos programa e reprograma estende os seus tentáculos pelo Estado. Por isso achamos normal que o Estado legisle que é proibido fumar nos lugares que o Estado gere e numa série de outros que o Estado não gere; por isso achamos normal que a ASAE decrete que as bolas de Berlim não podem ser vendidas como sempre foram, ou que os pastéis de bacalhau não podem ser congelados nos pequenos cafés e restaurantes. Por isso, achamos lógico que o Estado legisle e volte a legislar sobre o nosso bem-estar, como se o nosso bem-estar não fosse uma coisa completamente nossa, individual, e não colectiva. Por isso, um dia reagiremos com indiferença se nos implantarem um "chip" por baixo da pele que nos impede de fumar, de comer gorduras, de estar sentado em frente à TV mais do que o tempo recomendado, de pôr açúcar no sumo de laranja, de beber um copo quando a alcoolemia já ultrapassou os 0,5 mg/l ou de nos apaixonarmos por alguém considerado não compatível connosco. Nesse dia, estarão realizadas as profecias de Huxley e de Orwell. Se a memória ainda for nossa (e não "chipada") lembrar-nos-emos de como nos levaram com a linguagem politicamente correcta, com a lei do tabaco, com tanta coisa que nos pareceu boa. É por isso que eu desconfio.

Henrique Monteiro no Expresso

 

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