03/05/2008

Inda que mal pergunte

Miguel Sousa Tavares, Expresso 

1 O Tribunal de Contas já explicou detalhadamente como é que o Estado conseguiu fazer um contrato de financiamento para a construção da Ponte Vasco da Gama mediante o qual acabámos a pagar duas ou três vezes o custo da ponte. Brilhantes escritórios da advocacia de influências que conseguiram tal proeza para o seu cliente; pobres contribuintes que vivem do seu trabalho e a quem o Estado chega a levar metade do que ganham, entre impostos directos e indirectos, para construir pontes e outras coisas que tais; desgraçados doentes do Serviço Nacional de Saúde que esperam dois anos por uma consulta urgente porque o Estado não tem dinheiro para lhes acudir em condições, porque gasta o dinheiro dos impostos a pagar três pontes em vez de uma! Agora, li há dias num jornal que o Governo pondera a hipótese de indemnizar a Lusoponte por lucros cessantes, decorrentes da entrada em funcionamento de uma nova ponte sobre o Tejo, a montante da Vasco da Gama. Leiam bem: o Governo concluiu que uma nova ponte era uma necessidade pública premente, para melhor servir as pessoas da zona da lezíria. E mandou fazê-la, conforme era sua obrigação. Mas, ao satisfazer assim uma necessidade pública, considera que veio atingir interesses privados, os quais consistiam exactamente em não servir o interesse público, para evitar a concorrência: as pessoas que dessem uma volta, de 50 ou mais quilómetros, para não falharem a Vasco da Gama. Presumo que isto também esteja previsto no contrato celebrado com a Lusoponte. O que pergunto é se acham normal que governantes assinem um contrato em que o Estado se compromete a indemnizar interesses privados no caso de fazer obra pública necessária?

2 Há muitos anos, e vá lá saber-se porquê, Mário Soares resolveu alcandorar Medeiros Ferreira ao posto passageiro de ministro dos Negócios Estrangeiros. Daí não veio grande mal ao país, visto que ele se limitou a fazer o habitual naquele cargo: passar a olhar o mundo de baixo para cima, em pose napoleónica, e começar a debitar tremendas e evidentes banalidades sobre o estado do planeta. Vinte anos a seguir, ocupou pacificamente um lugar de deputado na bancada do PS, não tendo, que me lembre, feito jamais intervenção parlamentar que se recorde ou lei que se recomende. Mas pode ser a minha memória a falhar. Do que não me lembro é de o ter visto discordar seriamente do seu partido em vinte anos que por lá passou tudo e mais alguma coisa. Daí o meu espanto ao ler que, agora que Sócrates o tirou das listas de deputados, Medeiros Ferreira descobriu que tinham querido calar "uma voz incómoda". Incómoda? O mesmo com o engenheiro João Cravinho. Governou quando quis e quanto quis (e bem mal, diga-se de passagem...), parlamentou quando quis e quanto quis e, quando já não quis, sacou um belíssimo lugar de administrador do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, com escritório na City de Londres e residência com vista para o Hyde Park. Antes de se despedir do Parlamento, Cravinho deixou ao PS uma herança envenenada: um chamado pacote contra a corrupção, que, além das boas e fáceis intenções, continha algumas disposições inconstitucionais e outras puramente demagógicas. Sentado ainda na Assembleia da República, de frente para José Sócrates, ouviu o primeiro-ministro classificar de "pateta" a sua proposta. Ouviu e calou. Esperou pela nomeação definitiva, mandou-se para Londres com a aura de herói da luta contra a corrupção e agora chora, nas páginas da 'Visão', pelos caminhos "neoliberais" do PS e da esquerda e afirma, com uma lágrima ao canto do olho, que "foi dos maiores choques da minha vida o mal-estar que o debate da corrupção causou no PS". Só pergunto a ambos: não podiam ter falado antes?

3 O mesmo com a dra. Catalina Pestana. Foi apresentada ao país como a salvadora da Casa Pia. Ela ia repor tudo na ordem, recuperar as boas práticas e o bom nome da instituição, defender os seus "meninos" contra tudo e contra todos e com o apoio institucional de todos, desde o Presidente da República até ao mais humilde funcionário da instituição. Agora, cessadas as suas funções, eis que vem afirmar que os maus tratos e os abusos a menores continuam dentro das paredes da Casa Pia. Ao ouvir isto, só me ocorre uma pergunta: o que lá esteve ela a fazer, então?

P.S. - A dra. Cândida Almeida, procuradora-geral-adjunta, corrigiu parte do que aqui escrevi na semana passada: não foi ela (enquanto magistrada encarregue de apurar as circunstâncias da obtenção da licenciatura pelo primeiro-ministro) a determinar a realização de escutas telefónicas aos responsáveis da Universidade Independente; essas escutas já tinham sido realizadas, a mando de uma sua colega e no âmbito de outro processo, e ela limitou-se a pedi-las e a pretender utilizá-las, aliás, como meio adicional de demonstrar a inocência do primeiro-ministro - o que lhe foi recusado pela juíza de instrução. Registo de bom grado a correcção - a que deu azo, apenas, o teor das notícias saídas na imprensa. Mas numa coisa discordo da dra. Cândida Almeida e concordo com a juíza de instrução: se já havia firmado a convicção sobre a inocência do primeiro-ministro, não vejo a necessidade de a reforçar com a utilização de conversas privadas que, inevitavelmente, acabariam no domínio público. Continuo a achar que as escutas telefónicas devem ser um meio excepcional de investigação e que quem a elas recorre deve ter consciência da violência que representa a sua publicitação. Mesmo que inócuas.

 

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