26/05/2008

Salvem: Os enchidos, os doces conventuais e os pratos típicos de cada região, símbolos da cultura portuguesa, estão em risco.

O alerta é dado por especialistas de gastronomia que pedem bom senso na aplicação das regras de higiene alimentar. E bom senso à ASAE.
Por Ana Machado e Sofia Rodrigues

"Será que há pratos que só se vão poder fazer em casa? A pergunta é lançada por quem conhece ao pormenor receitas de cozinha regional incompatíveis com as exigências de uma legislação comunitária que a Autoridade para a Segurança e Alimentação Económica (ASAE) faz cumprir com rigor.
José Manuel Alves, responsável pelo site gastronomias.com e grão-mestre das confrarias dos gastrónomos do Algarve, está preocupado com os efeitos da aplicação cega do pacote de higiene comunitário: "Há muitas tradições que se vão perder."
Outros membros de confrarias contactados pelo P2 também contestam o exagero na fiscalização, defendem formação profissional e, sobretudo, a criação de excepções à lei para os pequenos produtores e para as pequenas quantidades.
O autor de gastronomias.com sugere como exemplo um prato típico da serra algarvia: milhos ferventados. São cozinhados com uma lenha especial, cuja cinza é peneirada e deitada para dentro da água até a pele do milho sair. São depois lavados e esfregados com sal grosso até deixar de haver vestígios de cinza e cozinhados com carne de porco como se fosse feijão. Confeccionar este prato com milho americano já sem pele não é a mesma coisa: "Sem saber qual dos milhos foi cozinhado, já experimentámos das duas maneiras e o sabor não é o mesmo."
Mas a doçaria conventual já teve também de se adaptar às novas regras. Guilherme Licksed já perdeu a conta às gerações que fabricaram, desde 1730, o pão-de-ló de Margaride, na fábrica de Felgueiras. Actual responsável da fábrica, Licksed conta como a arte bicentenária teve de alterar os seus hábitos com as visitas da ASAE. "Já todos tivemos visitas da ASAE e levantam-se sempre problemas. Afinal a madeira pode ou não usar-se?", questiona-se sobre a alteração que fizeram numa fábrica onde todas as máquinas de amassar a massa do pão-de-ló eram em madeira. "Mantemos as máquinas antigas só para serem vistas. Todo o processo de fabrico passou a ser feito em inox", conta.
O pão-de-ló de Margaride viu-se assim obrigado a render-se à modernidade, mas Guilherme Licksed garante que o sabor se mantém, as pessoas não se queixam. Só que subsistem dúvidas: "Também já cá estiveram técnicos que nos dizem que não está escrito em lado nenhum que é proibido usar a madeira." Também o armazenamento da farinha e do açúcar, que era feito em grandes balsas de madeira, teve de ser alterado. "Foi um grande investimento."
Colher de pau obrigatória
Pedro Vaz está à frente do fabrico de outra pérola dos pães-de-ló nacionais, o pão-de-ló de Vizela. Pedro é já a quinta geração de fabricantes da Casa Delícia e garante que ali a madeira é essencial numa das fases mais importantes do processo de fabrico desta relíquia da doçaria nacional: "O pão-de-ló é barrado no final com uma calda de açúcar e a temperatura do açúcar obriga a que seja espalhada com uma colher de pau. Nunca foi proibida a colher de pau. Não pode estar é em mau estado de conservação", diz sobre aquele instrumento precioso para a integridade do pão-de-ló de Vizela. "O inox aqui não dava e também não há colheres em inox com o formato que usamos em madeira. Temos é de mudar as colheres muito mais regularmente. Tem de ser. Já muita coisa se está a perder", alerta.
Na zona da serra da Estrela, o queijo que tem "alimentado gerações" é também o sustento de muitas famílias. As pequenas produções sentem-se ameaçadas pelo rigoroso cumprimento da legislação comunitária não só por razões de higiene mas também por motivos burocráticos. "Há produtores de 60 anos que nem a quarta classe têm. Fazem bem o produto, mas é com dificuldade que escrevem os registos de produção e de venda exigidos por lei", ilustra João Madanelo, membro da Confraria do Queijo da Serra.
As formalidades podem ser dissuasoras para as produções caseiras. "O cumprimento de todas as regras pode ser ameaçador para a continuação do produto e de todo o ecossistema", sublinha João Madanelo, que recomenda bom senso à ASAE e deixa-lhe um recado - "não se pode confundir esterilidade com limpeza".
Francisco Lino, chanceler da Confraria do Azeite, dá outro exemplo dos reflexos causados por uma "atitude musculada da lei": o fecho de 600 unidades produtivas e o consequente abandono dos campos. Algumas "foram bem fechadas", outras nem tanto. "Não se pode multar porque uma teia de aranha apareceu no tecto e não se olha para o asseio das instalações", afirma Francisco Lino, referindo-se a uma acção da ASAE num lagar onde se produzia "um dos melhores azeites nacionais". Para o apreciador de azeite, quem perde é o consumidor: "Os pequenos produtores começam a abandonar o campo e as grandes unidades de produção cultivam olivais intensivos com plantas que vêm de fora e que dão um produto diferente."
100 km por uma alheira
À mesa do restaurante, o cliente também fica com menos opções no menu. Actualmente, não é possível o abate de aves e coelhos fora dos matadouros e o aproveitamento do sangue dos animais para fazer pratos como o arroz de cabidela. Ana Soeiro, especialista em qualificação de produtos tradicionais, recomenda que seja autorizada aos restaurantes a compra de aves e coelhos, em pequenas quantidades, directamente a explorações agrícolas ou outras unidades de actividade marginal e localizada. Até porque, em alguns casos, o matadouro mais próximo fica a mais de 100 quilómetros, o que leva ao uso de alternativas menos apetecíveis. "Como não existe nenhum matadouro de aves e coelhos na nossa região, utilizam-se animais de aviário na confecção de alheiras", constata João Paulo Costa, da confraria gastronómica da carne de porco bísara.
Para Ana Soeiro, é também uma "deficiente e rígida" interpretação dos regulamentos comunitários que impede de serem servidos aos hóspedes de uma casa de turismo rural refeições com carne de animais abatidos na própria exploração agrícola. O seu consumo só é permitido aos membros da família que gere o espaço. Interpelado pelo P2, o ministro da Agricultura, Jaime Silva, tem outra leitura deste caso e frisa que se podem abater galinhas e coelhos nas propriedades de turismo rural e servir a carne aos hóspedes. Só ficam de fora os bovinos e ovinos, por causa do risco de encefalopatias espongiformes, acrescentou o ministro.
A autorização dada no início deste ano pelo Ministério da Agricultura para a produção de pequenas quantidades de fumeiro em casa, num período temporário, para venda ao consumidor final, veio repor a legalidade em torno das feiras de fumeiro. Mas o licenciamento das cozinhas particulares era ainda desconhecido por muitos expositores da feira de Montalegre que optaram por ficar em casa.
"Houve um grande temor à ASAE. Muitos produtores, sobretudo os mais velhos, recusaram-se a vir, com medo de serem humilhados", conta o veterinário municipal, Domingos Moura.
A recente preocupação com a ameaça à integridade da gastronomia portuguesa levou a bancada parlamentar do PS a criar um grupo de trabalho para fazer um levantamento das particularidades dos produtos tradicionais. Uma forma de harmonizar a cultura e as regras de higiene alimentar. Trabalho nem sempre fácil. "

Publico

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