16/10/2005

Avestruz

Retomo a questão da legitimidade da leitura nacional das eleições locais que ontem aqui abordei, a propósito de um artigo de Miguel Sousa Tavares. Há duas atitudes opostas perante o assunto ou mantemos uma posição de princípio absolutamente irredutível - que é rejeitar essa leitura nacional, por ser perigosa para a democracia - ou entendemos tal leitura como pertinente em quaisquer circunstâncias - é o que fazem normalmente os partidos da oposição quando o partido do Governo é penalizado nas urnas. Nesta última posição podemos ainda distinguir dois campos: o dos que recusam extrair ilações radicais sobre a legitimidade das políticas governativas (é o caso do PSD) e o dos que, pelo contrário, interpretam os resultados eleitorais como um "cartão vermelho" ao Governo (é sobretudo o caso do PCP). Temos assim uma posição de princípio intransigente e várias posições tácticas, entre as quais podemos também incluir, embora num sentido inverso, a de José Sócrates no seu discurso da noite eleitoral. O problema com todas estas posições é que nenhuma delas nos permite, no fundo, "ler" os diferentes significados que as eleições sempre comportam - desde a esfera local até à sua projecção nacional. Os excessos de intransigência ou de tacticismo inibem um esforço interpretativo capaz de produzir conclusões esclarecedoras. Percebe-se que Sócrates tenha tentado desvalorizar, tacticamente, o significado nacional das eleições autárquicas. Só que o recurso sistemático aos artifícios tácticos para iludir a realidade acaba por auto-iludir quem o pratica, levando-o a confundir a verdade dos factos com a ficção da propaganda. Sócrates relativiza o que não deveria ser relativizado, enquanto Jerónimo de Sousa torna absoluto o que, obviamente, não o é. A política de vistas curtas faz perder o sentido da visão. E a meter a cabeça na areia, como a avestruz.

Vicente Jorge Silva

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