02/10/2005

Como o Governo quer resolver o défice: Comentário às medidas propostas

Cristina Casalinho, do Departamento de Estudos Económicos e Financeiros do BPI

Antes de se pensar em reduzir despesa e/ou aumentar receita, a sociedade portuguesa devia definir qual o tipo de Estado que pretende. Deseja-se um Estado social tipo nórdico que, implica maior receita, mas mais e melhor serviço, ou um Estado de cariz anglo-saxónico que, envolve menor receita e reduz a sua actividade às funções básicas (praticamente limitado à produção de bens públicos puros)? Apenas após esta discussão se deveria debater o conjunto de medidas destinadas a reduzir despesas e/ou aumentar receitas. Esta decisão ficou, de novo, adiada. A actual maioridade parlamentar torna-a possível, enquanto as condições económicas a exigem.As medidas anunciadas contemplam, de forma abrangente, as propostas que tinham vindo a ser avançadas. O governo, apesar da necessidade de geração de receita no curto prazo para fazer face à premência da correcção do défice, com vista a elaborar um Programa de Estabilidade e Crescimento credível, propõe-se levar a cabo reformas vastas do lado da despesa, promovendo a racionalização da Administração Pública. O conjunto de medidas é equilibrado, embora nalguns aspectos se pudesse ter sido mais ambicioso. Por exemplo, muito embora se reconheça a necessidade de racionalizar a gestão de compras e logística, não se fala claramente da indispensabilidade de informatização dos serviços do Estado, integração de sistemas e bases de dados entre ministérios, facilitando cruzamento de informação, a relação com os cidadãos/contribuintes e a fiscalização (não foi repescada a ideia de introdução de um cartão único do programa eleitoral). Sobre o tema da reestruturação do Estado, as medidas para o SNS pecam por defeito face ao desequilíbrio financeiro existente, apenas se apresentam medidas de redução da comparticipação dos medicamentos. Mas, mais importante que tudo, não há menção à introdução de orçamentos de base zero ou a mecanismos claros de controlo e fiscalização da execução orçamental em todos os níveis da Administração Pública. Acresce que um dos aspectos que tem contribuído para a degradação das contas públicas não foi focado: o financiamento da Administração Local.Existem medidas estruturantes que são de salientar: a convergência dos regimes contributivos no sector público e privado e a possibilidade de levantamento do sigilo fiscal. Refiram-se ainda a intenção de limitação das regalias dos administradores das EPs e a eliminação das subvenções vitalícias dos titulares de cargos políticos pelo seu carácter exemplar, numa tentativa de criar um ambiente de equidade, envolvendo a população numa onda de empatia e partilha de custos.O aumento de impostos:IVA: Os impostos tinham de subir e o IVA é dos impostos que gera um dos mais rápidos acréscimos de receita e tem fácil e célere implementação, embora tenha defeitos ao nível da progressividade e potencialmente da competitividade. E, como se verificou em 2003, é sensível ao ciclo económico. Se a economia desacelerar em 2006, as receitas geradas poderão desapontar. Restam agora poucos países com taxa de IVA superior à portuguesa, enquanto os maiores parceiros comerciais nacionais desfrutam de taxas inferiores. Todavia, face à actual concorrência ao nível de fiscalidade sobre o rendimento, dificilmente, não se aumentaria o IVA.ISP, sobre tabaco e álcool: O aumento do ISP é mais questionável, porque tem implicações sobre a competitividade, (os custos de produção e transporte ficam mais elevados em Portugal). Poderá, contudo, idealisticamente, promover um aumento da eficiência no uso desta fonte energética. Os impostos sobre tabaco e álcool, sendo a procura inelástica, justificam-se, tanto mais que têm implicações negativas na saúde pública.IRS: A tributação do rendimento pessoal em Portugal compara relativamente bem com outros países europeus. Contudo, num ambiente de concorrência tributária e pretendendo-se atrair mão-de-obra especializada, com conhecimentos tecnológicos, que permita melhorar as práticas empresariais nacionais, elevando as capacidades da mão-de-obra, esta não seria uma medida desejável. Mesmo invocando um princípio de equidade que, transparece no discurso do Primeiro-Ministro, recorde-se que países com maior progressividade fiscal, têm vindo a limitá-la, pois nalguns casos reduz a capacidade empreendedora da economia, a vontade de assumir riscos e de aceitar posições de responsabilidade. Para além do que as pessoas poderão ser tentadas a “votar com os pés�. Relativamente à eliminação de benefícios fiscais, nada foi concretizado, mas, de facto, nalguns casos, a sua existência (já) não se justifica.IRC: A limitação de utilização de benefícios fiscais pode justificar-se, embora no caso referido, tenha perdido importância, na medida em que estas operações se reduziram substancialmente. A questão da tributação do lucro das instituições financeiras na Zona Franca da Madeira é controversa e, no passado, não se concretizou.Combate à evasão fiscalA ideia do levantamento do sigilo fiscal é uma novidade positiva, mas a sua concretização levanta muitas interrogações. Veja-se o número reduzido de empresas cotadas que divulgam as remunerações dos membros do conselho de administração. E os cidadãos vão tornar-se delatores, vigilantes dos vizinhos no cumprimento das suas responsabilidades fiscais? A função de fiscalização é do Estado. Mais, interessante teria sido a introdução de uma chave comum dos contribuintes (tipo cartão único para as relações com SS, SNS e DGCI), um forte compromisso com a informatização de serviços e integração de bases de dados na Adm. Pública e alteração da legislação de protecção de dados.Reestruturação da Administração PúblicaAs medidas de avaliação ministerial com vista ao seu redimensionamento é positiva, mas colocam interrogações sobre a concretização dos resultados deste processo de aferição. No passado, os esforços de reestruturação da Administração Pública soçobraram; por isso, presentemente as expectativas são reduzidas.Função Pública:Fundamental a convergência a prazo do presente regime para o regime geral e a introdução de práticas de gestão de pessoal em linha com a prática no sector privado, se o objectivo é promover a eficiência dos funcionários públicos.O que faltou:Reestruturação da Administração Pública: dispõe o actual governo de força política para levar avante esta tarefa que se tem revelado de impossível execução? Para ser bem sucedido, para além da maioria parlamentar de que goza, terá de atrair para esta tarefa os restantes partidos, os trabalhadores envolvidos, os sindicatos e a população em geral. Será que se irá conseguir gerar esta confluência de interesses? A sua indispensabilidade e os fracos resultados dos esforços passados levantam muitas interrogações sobre as reais possibilidades de sucesso.Orçamentos de base zero e introdução de mecanismos claros de controlo de execução do orçamento: para o sucesso da contenção de despesas tem de se romper com as actuais práticas atávicas e para tal é indispensável (ou pelo menos será mais fácil) o recurso a orçamentos de base zero, estabelecimento de programas de despesa plurianuais e instituição de mecanismos internos e externos de controlo da execução. É igualmente inapelável a responsabilização pelos eventuais desvios e, para tal, assegurar estabilidade dos ocupantes dos cargos de topo na Administração Pública, eliminando potenciais cargas políticasCompromisso com a informatização dos serviços do Estado, sua integração informática, partilha de bases de dados e sistemas, assegurando um ambiente de trabalho comum e facilitando fiscalização das funções, das relações com os cidadãos e empresas.Alteração do financiamento da Administração Local: uma das actuais fragilidades do sistema.A grande dúvida: tem o governo capacidade e vontade política para pôr em prática uma política agressiva de redução de custos na função pública, implicando redimensionamento, alteração radical de cultura, controlo apertado da execução orçamental, responsabilização pelos desvios…? A contestação social (e não só) avizinha-se. E, no passado, os governos sucumbiram ao seu peso. Nos países que, recorrentemente nos servem de exemplo, a saída das crises proporcionou momentos regenerativos com apoio incondicional de toda a população e de todo o espectro político. E, porquê a teimosia com a manutenção das Scuts?

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