11/06/2006

A INSPIRAÇÃO SEGUNDO NIETZSCHE

Alguém, neste final do século dezenove, tem nítida noção daquilo que os poetas de épocas fortes denominavam inspiração? Se não, eu o descreverei. — Havendo o menor resquício de superstição dentro de si, dificilmente se saberia afastar a idéia de ser mera encarnação, mero porta-voz, mero medium de forças poderosíssimas. A idéia de revelação, no sentido de que subitamente, com inefável certeza e sutileza, algo se torna visível, audível, algo que comove e transtorna no mais fundo, descreve simplesmente o estado de facto. Ouve-se, não se procura; toma-se, não se pergunta quem dá; um pensamento reluz como relâmpago, com necessidade, sem hesitação na forma — jamais tive opção. Um êxtase cuja tremenda tensão desata-se por vezes em torrente de lágrimas, no qual o passo involuntariamente ora se precipita, ora se arrasta; um completo estar fora de si, com a claríssima consciência de um sem-número de delicados tremores e calafrios que chegam às pontas dos pés; um abismo de felicidade, onde o que é mais doloroso e sombrio não actua como contrário, mas como algo condicionado, exigido, como uma cor necessária em meio a tal profusão de luz; um instinto para relações rítmicas que abarca imensos espaços de formas — e longitude, a necessidade de um ritmo amplo é quase a medida para a potência da inspiração, uma espécie de compensação para sua pressão e tensão... Tudo ocorre de modo sumamente involuntário, mas como que em um turbilhão de sensação de liberdade, de incondicionalidade, de poder, de divindade... A involuntariedade da imagem, do símbolo, é o mais notável; já não se tem noção do que é imagem, do que é símbolo, tudo se oferece como a mais próxima, mais correcta, mais simples expressão. Parece realmente, para lembrar uma palavra de Zaratustra, como se as coisas mesmas se acercassem e se oferecessem como símbolos ("aqui todas as coisas vêm afagantes ao encontro da tua palavra, e te lisonjeiam, pois querem cavalgar no teu dorso. Em cada símbolo cavalgas aqui até cada verdade. Aqui se abrem para ti as palavras e arcas de palavras de todo o ser; todo o ser quer vir a ser palavra, todo o vir a ser quer contigo aprender a falar"). Esta é a minha experiência da inspiração; não duvido que seja preciso retroceder milênios para encontrar alguém que me possa dizer: "é também a minha".

Extraído de "Ecce Homo"; tradução de Paulo Cesar Souza.

1 comentário:

Anónimo disse...

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