11/06/2006

NIETZSCHE E OS CIVILIZADOS

Fiz um longo vôo pelo futuro e fiquei horrorizado. Ao olhar em torno de mim, me dei conta de que o tempo era o meu único companheiro. Tomei, então, apressadamente, o caminho de volta: e cheguei até onde estão homens de hoje, ao país da civilização. Pela primeira vez olhei as pessoas com olhos de benevolência e com verdadeira boa vontade. E que me aconteceu, então? Apesar do medo que me invadiu, comecei a rir sem parar. Nunca meus olhos tinham visto qualquer coisa de tão ridículo.
Eu ria, ria, mas na verdade sentia inseguros os pés e me tremia o coração. E disse comigo mesmo: — "Este deve ser o país dos vasos coloridos". Pois, com as faces e os membros pintados de mil maneiras, os homens atuais me deixavam assombrados. E cercados por milhares de espelhos, eram fascinados pela repetição das cores com que se pintavam. Na verdade, os homens de nossa atual civilização não precisam de usar máscaras melhores do que suas próprias faces. Quem os poderia reconhecer?
Estão pintados com os sinais do passado e com outros sinais, e desta forma se disfarçam e se ocultam de todos os que desejam entendê-los. E ainda que alguém soubesse examiná-los por dentro, quem poderia assegurar que eles tenham alguma coisa por dentro? Pois parece que são feitos de cores e de papéis colados. Todos os tempos e todos os povos olham com revolta através de seus disfarces. Todos os costumes e todas as crenças se confundem em suas atitudes.
Se alguém lhes retirar os disfarces, os retoques, as cores e as atitudes, não restará mais do que um espantalho. Na verdade, eu sou, eu mesmo, um pássaro espantado por tê-los visto alguma vez despidos e sem pinturas, e fugi, aterrorizado, porque eram como um esqueleto que acenava afetuosamente para mim. Parece-me preferível descer às profundas do inferno e confundir-me entre as sombras do passado, pois as sombras do passado têm mais consistência do que o homem desta civilização.
A minha íntima amargura é que não posso suportar os homens da civilização atual nem vestidos nem nus. Tudo o que perturba no futuro e tudo que pode afugentar um pássaro espantado está ainda aquém do indignado espanto que causam esses homens da civilização. Eles dizem: — "Somos inteiramente realistas, não temos crenças nem superstições". E com isso enchem o peito. Mas nem chegam a ter peito.
De todo modo é verdade. Sendo apenas pinturas de homens, não podem crer em nada. Pois são apenas a pintura das coisas em que o homem acreditava quando era homem. São uma refutação da própria fé, e neles se dá a ruptura de todos os pensamentos. Eu não tenho outra maneira de designar esses homens que se dizem realistas, senão de incríveis. Pois todas as épocas conflitaram umas contra as outras em seus espíritos. E os sonhos e as deblaterações de todas as épocas eram mais reais do que a vigília dessas pessoas.
São estéreis, e por isso lhes falta a fé. Aquele, porém, que devia criar, tinha sempre também seus sonhos de verdade, como um sinal das estrelas, e tinha fé na fé. Mas os de agora são portas entreabertas por onde, a qualquer momento, vão entrar os coveiros. Nem merecem outra divisa senão esta: — "Tudo deve desaparecer".
Como eles estão diante de mim, os homens estéreis nem sequer percebem que não têm uma costela de onde um deus possas tirar outro ser. E dizem: — "Será que um deus poderia tirar alguma coisa de mim enquanto durmo? Certamente, o bastante para formar uma mulher, mas a pobreza das minhas costelas é impressionante". Esta é a maneira de falar de muitos homens importantes. Quanto a mim, os homens atuais me assombram, especialmente quando se espantam consigo mesmos.
Pobre de mim, se não pudesse rir de seus assombros e se tivesse que tragar todas as repugnâncias que oferecem. Tenho coisas mais sérias em que pensar e cargas mais pesadas sobre meus ombros. Os insetos e as moscas que pousam sobre eles não aumentam o peso de meu fardo. Nenhum desses indivíduos é capaz de aumentar a minha carga e a minha fadiga. Meu desejo deve subir acima de meus contemporâneos. Olho do alto de todos os píncaros, procurando uma pátria, uma terra natal. Mas em nenhuma parte as encontro. Percorro todas as cidades e passos por todas as portas.
Os contemporâneos, pelos quais um dia se inclinou meu coração, me parecem todos estranhos e me provocam o riso. Vejo-me expulso das pátrias e das terras natais. Já não amo, pois, senão o país de meus filhos, a terra incógnita entre mares longínquos. No rumo dessa terra se enfunam incessantemente as velas de meu barco. Quero compensar em meus filhos a deficiência de ser filho de meus pais. E quero, com o futuro, compensar a pobreza do presente.
Assim falava Zaratustra.
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Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), filho de um pastor protestante, estudou filologia clássica na Universidade de Bonn, depois em Leipzig, onde conheceu Wagner, estabelecendo-se entre os dois uma influência recíproca e uma amizade profunda que seria dramaticamente rompida. Sua extensa obra é considerada um dos momentos culminantes do gênio humano, desde a nova definição de valores da "Origem da Tragédia". Depois de romper com Wagner e Schopenhauer, fazendo o que chamou de "cura anti-romântica", começou, também segundo sua própria expressão, a "enterrar sua confiança na moral". Entra, então, numa fase de crítica a todos os valores universais e absolutos. E em sua terceira fase que chega às iluminações de um pensamento original, de que "Zaratustra" é, sem dúvida, o marco inicial. É deste livro, "Also Sprach Zaratustra", o texto que hoje se publica, traduzido do original alemão por Gerardo Mello Mourão.

1 comentário:

Anónimo disse...

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