01/06/2006

Oliver Twist de Roman Polanski

Algumas obras literárias estão destinadas a um sucesso que transcende o tempo e o espaço geográfico em que foram criadas para se tornarem pontos de referência de uma cultura dita universal. Oliver Twist de Charles Dickens é uma tal obra.

Publicado em folhetim, entre 1837 e 1839, é um dos livros mais populares do escritor britânico, recriando o submundo da Inglaterra Vitoriana, onde uma sociedade cruel e hipócrita força crianças a serem confrontadas com vilania e exploração.

Inúmeras adaptações cinematográficas e televisivas foram já realizadas ao longo do séc. XX, sendo talvez a mais emblemática a versão de David Lean, com Alec Guinness no papel de Fagin. Em 2005, o aclamado realizador Roman Polanski (Rosemary's Baby, Chinatown, The Pianist)apresenta um novo olhar sobre a vida do pequeno órfão, Oliver Twist.

Um leitor conhecedor da obra de Charles Dickens terá reparado o quão frequentemente coloca crianças como pequenos heróis nos seus romances, vítimas de uma tirania sem precedentes, numa Inglaterra que se via a braços com as consequências da Revolução Industrial. Nesta época, assistia-se a uma profunda e crescente desumanização, reflectida principalmente nas ruas de Londres, palco de uma luta pela sobrevivência representada através da vida de Oliver, e a sua ascensão de um abismo de miséria e crime para o seio protector de uma família.

Uma leitura da biografia de Dickens revela-nos como é a sua própria experiência que está retratada no livro. Após a falência e prisão de seu pai, aos 12 anos, é forçado a trabalhar numa fábrica de verniz de sapatos. Uma criança vadia pelas vielas de Londres que cedo assimilou todas essa negritude e espelhou-a na sua escrita, determinado a ultrapassar todos os obstáculos e singrar na sociedade como homem de estatuto.

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As muitas crianças abandonadas, desamparadas e órfãs que povoam as suas histórias demonstram a sua sensibilidade para com o seu sofrimento e transformam Dickens, ao mesmo tempo, num paladino dos marginais e desprezados pelos gentleman vitorianos. Por trás de um vivaz contador de histórias, oculta-se um crítico incisivo à civilização hipócrita que condena a inocência.

O que terá tanto atraído Roman Polanski nesta história poderá ter sido precisamente a luta pela sobrevivência. Não querendo entrar em análises psicológicas ou misturar biografia com ficção, o próprio passado de Polanski, durante o tempo da II Grande Guerra, poderia entrar em paralelo com a vida de Oliver.

O filme começa com a devolução de Oliver, uma criança de nove anos, ao orfanato onde passou os primeiros anos de infância. Após cometer a afronta de pedir por mais uma dose de comida, Oliver é praticamente posto à venda para a primeira pessoa que o aceitar. Depois de salvo por um triz do destino de limpa-chaminés, um destino pior que a morte para as crianças desta época (a título de curiosidade, recomendo a leitura dos tocantes poemas The Chimney Sweeper de William Blake, presentes em Songs of Innocence and Experience), acaba por ser acolhido por um cangalheiro. Mas a crueldade a que é submetido às mãos do aprendiz do cangalheiro, força-o a fugir para Londres.

Em Londres, conhece The Artful Dodger, um pequeno e experiente ladrão, que o apresenta ao velho Fagin. Fagin, interpretado por Ben Kingsley (Ghandi), é uma das personagens centrais no filme, na medida em que irá actuar como protector de Oliver e funcionar como a figura paterna que o pequeno tanto deseja. O velho judeu (Fagin nunca é aludido como judeu durante o filme) é apenas uma de uma galeria de personagens memoráveis Dickensianas que assombram a imaginação do leitor e aí perduram.

A complexidade dessa personagem tem sido revisitada na última década e palco de novas transfigurações (Will Eisner em Fagin, the Jew). Inclusivé, o filme é despido de todos os pormenores adicionais melodramáticos (no livro, a identidade dos pais do órfão é revelada de forma um pouco forçada) que possam desviar a atenção do espectador da relação entre Fagin e Oliver.

O que está principalmente em foco no filme é a busca de um lar, um local onde Oliver pode crescer a salvo e com a estabilidade e amor suficientes para se poder tornar em alguém valoroso. Mas esse lar paradisíaco, representado na pessoa de Mr. Brownlow, é subitamente ameaçado e torna-se o alvo do grupo de Fagin e o o seu antigo discípulo, o psicótico Bill Sykes.

Se o filme consegue passar essa mensagem de esforço heróico e abnegação, é muito graças a Barney Clark, que sem ceder a excessos dramáticos, consegue transmitir a imagem exacta de vulnerabilidade e inocência. Tem razão Fagin quando comenta com Sykes que o rapaz tem uma face angelical capaz de roubar idosas na Igreja. Conjugando as interpretações eficazes de todo um elenco de actores com cenários urbanos cinzentos visualmente impressionantes, mas decididamente austeros e clássicos, a narrativa desenrola-se fluidamente por duas horas, centrando-se exclusivamente no essencial que a história tem para oferecer: a sobrevivência num meio hostil.

Não sendo grande apologista de comparações entre a obra literária e obra fílmica, é contudo pertinente comentar o facto de Polanski nunca realmente captar a atmosfera de negritude que envolve a narrativa e mergulhar fundo nela, com excepção da cena no tribunal, em que Oliver desmaia, um impressionante exemplo do melhor de Dickens transposto para o ecrã, onde estão presentes o humor negro, a crueldade, hipocrisia e até a esperança condensados num único excelente momento.

No entanto, ainda que não tenha captado, de forma ousada, todas as camadas que o livro apresenta, faz jus à narrativa e seu autor. Recomenda-se a todos os apreciadores de literatura inglesa do séc. XIX e recriações fílmicas da época Vitoriana.

http://en.wikipedia.org/wiki/Charles_Dickens
http://www.sonypictures.com/movies/olivertwist/
http://minadream.com/romanpolanski/Biography.htm

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