31/01/2006

Meu querido futebol

Foi um acaso. Eu participara num programa de desporto da RTP, fazendo um qualquer comentário sobre futebol e, no final, o Manuel da Costa e o Miguel Barroso convidaram-me para um copo no clássico bar lisboeta Snob. Nessa noite, muito aprendi sobre o "futebol".Aí, ouvi o que seria (se uma viagem ao Brasil o não traísse) o futuro chefe da arbitragem explicar como, nos anos do seu reinado, o Sporting teria nulas hipóteses de ser campeão. Aí, ouvi a explicação de como os ambientes dos grandes FC Porto e Benfica pesavam nas decisões dos árbitros - "na dúvida, o árbitro decide a seu favor." Aí, entendi como o árbitro - nesses tempos, pelo menos - podia enervar e tolher uma equipa, provocando os jogadores, ameaçando-os, interrompendo um fio de jogo atacante com faltas cirúrgicas. Aí, fiquei a saber como um cartão vermelho a Vítor Baía, por impedir em falta um atacante contrário de prosseguir isolado para a baliza, foi transformado em simples amarelo... a pedido do jogador. Aí, ouvi a deliciosa história dos fora-de-jogo também a pedido, quando um capitão do Benfica, em situação difícil para a sua defesa, levantava o braço e o juiz de linha punia o adversário.Essa esclarecedora conversa levou-me a tentar entender os mistérios do poder no futebol, em reportagens depois publicadas no DN. Como chegara o FC Porto (e o Norte) ao poder, depois do longo ciclo de Lisboa? Que acontecera nos anos 70 e seguintes? A síntese foi esta o País mudara e, com ele, o poder no futebol.Nas décadas de 50 e de 60, Lisboa dominou essa teia. Sporting e Benfica detinham o domínio da Federação, em coligação com o Belenenses - era o trio BSB, apoiado pelo poder de então. No auge do poder lisboeta, nomeadamente o do Benfica, o viveiro de grandes futebolistas originários de Angola e de Moçambique era carreado para os grandes da capital. O FC Porto era tratado como um clube de bairro.Mas o 25 de Abril tudo mudou. Quando o dr. Cunhal inventou a revolução marxista, destruindo o poder económico da Grande Lisboa e da península de Setúbal e fragilizando os municípios dessa coroa geográfica, o poder do Sul desmoronou-se. Muitos dos clubes que baseavam o poder das Associações de Futebol de Lisboa e de Setúbal (eixo forte do poder na Federação) ficaram sem apoios. A incapacidade do poder revolucionário em penetrar no Norte, um poder económico emergente e o novo poder autárquico democrático serviram de suporte aos clubes da faixa litoral nortenha.A isso se juntou, como aliado importante, o "método de Hondt".Explico tirando partido do facto de terem mais clubes filiados, as Associações do Porto, de Aveiro e de Braga defenderam a aplicação daquele método de representação eleitoral partidária às eleições na Federação.E assim ganharam a maioria.Com ela, chegou progressivamente o poder, onde de facto ele se situava - nos Conselhos de Arbitragem, de Disciplina e de Justiça e na área administrativa e financeira. Na sua maior parte encabeçada por dirigentes ligados ao Boavista, a coligação do Norte, dirigida na realidade pelo FC Porto, inverteu a relação de forças na Federação. Ao poder do Norte juntou-se a dinâmica modernizadora do FC Porto, obra do treinador José Maria Pedroto e de Pinto da Costa. Neste poder, num clube bem gerido e em equipas fortes se basearam as grandes vitórias e a explosão portista, nos anos 80 e 90.Quando, nos anos 90, se cria a Liga de Clubes - agregando apenas os clubes ditos profissionais - o poder das associações torna-se irrelevante, mas a presença do Norte, construída na década anterior, mantém-se. Dos votos das associações passa-se para o voto igualitário dos clubes. Ao Norte bastou manter uma maioria e dispor, na Liga Profissional, dos postos-chave presidência, director executivo, comissões de arbitragem e de disciplina. A aliança entre o FC Porto e o Boavista originou, nos anos 90, campeões e vice- -campeões. O Benfica apareceu na estatística uma vez e o Sporting duas - na virada do século, num momento de confusão entre Boavista e FC Porto.A seguir, quando FC Porto e Sporting querem apear o major Valentim Loureiro e se aliam, este volta-se para o Benfica - e a coligação de poder na Liga muda. É o momento da célebre frase de Luís Filipe Vieira, quando refere ser mais importante ter gente sua no aparelho do futebol profissional do que contratar jogadores. E tinha razão, um medíocre Benfica sagra-se campeão logo de seguida. Com o êxito vem dinheiro e com dinheiro chegam jogadores.Mesmo reconhecendo que o panorama da arbitragem é hoje, felizmente, bem diferente, não sei é se, apesar de tudo, a explicação do tal árbitro não valerá ainda na dúvida... o verdadeiro poder decide. Nem sei porque é que, hoje, me lembrei disto.

José Manuel Barroso - Jornalista

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