14/11/2008

Congratulations Mr. Derryl

2008-11-10

É alto e magro. Terá uns setenta anos. Nos negros é difícil adivinhar-se a idade, mas os novelos de cabelo branco que pontilham um penteado impecável são um indício de que estamos na presença de alguém que viveu muito.

O fato de bom corte assenta-lhe como se fosse parte de si. Um centímetro da manga da camisa engomada a rigor sai do casaco e deixa ver um discreto traço dourado de um botão de punho antigo. O nó da gravata de riscas conservadoras comprime-se na precisão de um homem que sabe tomar conta de si contra um colarinho imaculado que parece de porcelana. 'Quer ficar junto da janela?'. 'Sim por favor.'.'O seu empregado vai trazer-lhe já o café e o sumo de laranja'. E com uma cortesia simples, sem servilismos nem intimidades, puxa-me a cadeira e abre-me um guardanapo. Quando se afasta noto que o fato cinzento-escuro com uma risca fina lhe cai com o rigor da postura rígida quase sem rugas sobre uns sapatos castanhos bem engraxados. Seis e meia da manhã, a sala de jantar está ainda vazia. O maître volta a aproximar-se da minha mesa. Olha para a credencial de imprensa que tenho ao peito e diz-me que já foi jornalista de rádio mas que se reformou e 'na América, nestes tempos, os reformados têm que trabalhar'. Pergunta-me se venho para as eleições. 'Vão ser cruciais', adverte-me. Concordo e ele apresenta-se. 'O meu nome é Mr. Derryl'. 'Prazer, o meu é Mário Crespo'. 'Pensando bem, se Obama ganhar estas eleições é como se a marcha de Luther King pelos direitos cívicos de 1964 tivesse chegado ao fim…Este voto é decisivo Mr. Crespo'. 'Creio que sim'. Despeço-me. 'Boa sorte para amanhã Mr. Derryl'. 'Para si também, Mr. Crespo'. Sigo rumo aos meus destinos, da busca de palavras curtas, medidas ao segundo para contar as evoluções de milénios, revoluções de séculos e estados de espírito que não se conseguem medir nem descrever bem. Votou-se nessa noite. Obama ganhou. Washington explodiu numa madrugada de euforia incontida de centenas de milhar de jovens de todas as raças. Desfilaram buzinando carros e convergiram sobre a Casa Branca, que estava já com as luzes apagadas. Desligam-nas normalmente à meia-noite e os actuais ocupantes não acharam que o momento merecesse qualquer excepção às rotinas. A noite estava muito escura. Entre cânticos de espirituais negros, tambores e latas batidas aos ritmos sempre imprevisíveis dos comboios da história, milhares comprimiram-se contra o gradeamento da residência presidencial e fizeram o ruidoso exorcismo das trevas durante horas. Filmei e falei. Senti um nó na garganta em depoimentos mais expressivos e ri com gosto num ajuntamento maior quando me abraçaram e quiseram entrevistar-me, a mim. E senti aquelas euforias e nostalgias súbitas de estar a viver a história numa ocasião irrepetível. Na manhã seguinte, novamente muito cedo (a diferença de cinco horas é impiedosa) fui tomar o pequeno-almoço. O maître continuava impecável, ostentando talvez um subtil sinal de alegria. A mesma gravata imaculada, o mesmo nó preciso. Em vez das riscas de clube inglês era do azul eléctrico, que é a cor dos Democratas. 'Congratulations Mr. Derryl'. 'Foi uma noite notável Mr. Crespo' e sem intimidades nem servilismo afastou-me a cadeira e abriu-me o guardanapo.

Mário Crespo, JN

 

 

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